Os três cavaleiros do apocalipse | parte IV

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E, realmente, esta era a grandeza do grande marechal; que, depois de perpetrar uma monstruosidade, ou de ordenar que uma fosse perpetrada, não demostrasse nenhum receio de acudir ao local do crime ou de ser visto na companhia de seu executante. Com efeito, cerca de uma hora depois, ele e o sargento cavalgavam juntos pela cimeira, até que, num determinado ponto, o marechal apeou, mandando que o outro seguisse em frente. Queria que o sargento fosse à cidade e conferisse se estava tudo quieto depois da execução ou se pairava alguma ameaça de ressentimento popular.

— Então é aqui, marechal? — perguntou em voz baixa o sargento. — Achei que fosse mais adiante; mas a verdade é que esta estrada infernal parecia se estender como um pesadelo.

— É aqui — respondeu Grock, desvencilhando-se ponderosamente de sela e estribo e se achegando ao longo parapeito a fim de olhar para baixo.

A lua se erguera sobre os pântanos e, ganhando em esplendor, luzia sobre as águas escuras e o rebojo verde. No juncal mais próximo, ao pé do declive, jazia, como numa espécie de luminosa e radiante ruína, tudo quanto restava de um daqueles soberbos cavalos brancos e cavaleiros brancos de sua antiga brigada. Tampouco restava dúvida quanto à identidade; o luar convertia numa espécie de auréola o cabelo dourado e encaracolado do jovem Arnold, segundo cavaleiro e portador do indulto; além de talim e botões, cintilavam sob esse místico luar as medalhas do jovem soldado, os galões e as insígnias de sua graduação. Sob tão glamouroso véu de luz, quase poderia estar vestido na armadura branca de sir Galahad; e dificilmente se veria contraste mais terrível do que aquele entre a graça e a juventude arruinadas abaixo e a pétrea e grotesca figura que olhava de cima. Grock havia retirado novamente o capacete; e conquanto fosse possível que isso denotasse alguma vaga sombra de respeito fúnebre, o efeito visível era que a cabeça nua e esquisita e o pescoço de paquiderme cintilavam como rocha ao luar, como se pertencentes a algum monstro da Idade da Pedra. Rops, ou semelhante gravurista da sombria e fantástica escola alemã, bem poderia ter composto aquela imagem: uma enorme besta inumana semelhante a um besouro olhando de cima as asas quebradas e a armadura branca e dourada de algum campeão derrotado dos querubins.

Grock não rezou nem se apiedou; mas, no fundo, de algum modo obscuro, ele estava mexido, mexido como até mesmo o imenso e obscuro pântano fica às vezes, como se fosse vivo; e como tende a ocorrer com homens dessa espécie quando se descobrem pela primeira vez na defensiva contra não sabem o que, ele tentou formular sua fé única e confrontá-la com o universo austero e a lua carrancuda.

— Antes e depois do feito, a vontade alemã é a mesma. Não podem quebrantá-la as vicissitudes e o tempo, como fazem com os que se arrependem. Fora do tempo ela existe como algo pétreo, fitando o futuro e o passado com a mesma face.

O silêncio subsequente durou o bastante para satisfazer sua fria vaidade com certa sensação de portento; como se uma figura de pedra tivesse falado num vale de silêncio. Mas o silêncio começou a vibrar novamente com um remoto sussurro que era o débil pulsar de cascos; no instante seguinte, o sargento voltava pelo viaduto a galope – às carreiras, melhor dizendo – com uma expressão na face marcada e morena que já não era meramente severa, mas espectral à luz do luar.

— Marechal — disse ele, batendo continência com estranha rigidez —, acabo de ver o polonês Petrowski!

— Ainda não o enterraram? — perguntou o marechal, ainda olhando para baixo e um pouco absorto.

— Se o fizeram — treplicou Schwartz —, ele rejeitou a terra e se ergueu do túmulo.

Olhava fixamente para a frente, para a lua e os charcos; mas, com efeito, embora estivesse longe de ser um visionário, não eram essas coisas que via, mas sim aquilo que acabara de ver. Havia, de fato, visto Paul Petrowski a caminhar, vivo e alerta, pela avenida principal brilhantemente iluminada da cidade polonesa até o comecinho do viaduto; como confundir a figura esguia de cabelo emplumado e tufo de barba afrancesada que figurava em tantos álbuns musicais e revistas ilustradas? E, atrás dele, o sargento vira a cidade polonesa incendiada de bandeiras e fogos e uma população que fervilhava com triunfante reverência – uma população menos hostil ao governo do que se poderia esperar, talvez, já que comemorava a libertação de seu herói.

— Está dizendo — exclamou Grock com súbita estridência na voz — que ousaram libertá-lo, desafiando minhas ordens?

Schwartz bateu continência de novo e respondeu:

— Foi libertado porque não receberam ordem nenhuma.

— Quer que eu acredite que, depois de tudo — disse Grock —, nenhum dos mensageiros que partiu do acampamento chegou à cidade?

— Ninguém chegou — replicou o sargento.

Fez-se um silêncio muito mais demorado, depois do que Grock falou, roufenho:

— O que, em nome das profundezas, aconteceu? Consegue pensar nalguma coisa que explique tudo isto?

— Eu vi uma coisa — respondeu o sargento — que acho que pode explicar.


Neste ponto se interrompeu o sr. Pond, com uma irritante falta de expressão no rosto.

— Ora — disse Gahagan, impaciente —, e você, sabe alguma coisa que explique tudo isso?

— Bem, creio que sim — disse humildemente o sr. Pond. — Veja, quando o relatório chegou ao meu departamento, tive que elucidar a questão. Teve realmente a ver com um excesso de obediência prussiana. Teve também a ver com o excesso de outro vício prussiano: desdém. E, de todas as paixões que cegam, enlouquecem e enganam as pessoas, a pior é também a mais fria: desdém.

“Grock se mostrara demasiado confortável diante da vaca, confiante demais perante o repolho. Desdenhava de gente estúpida, mesmo que pertencente ao seu próprio pessoal; e tratava von Hocheimer, o primeiro mensageiro, como parte da mobília meramente porque parecia tolo; mas o tenente não era tão tolo quanto parecia. Assim como o cínico sargento, que se ocupara a vida toda do serviço sujo, ele compreendia as intenções do grande marechal. E compreendia também a peculiar filosofia moral de von Grock: que uma ação é inelutável mesmo quando indefensável. Ele sabia que seu comandante queria o cadáver de Petrowski; que o queria de qualquer maneira, a qualquer custo, mesmo que tivesse de enganar príncipes e sacrificar soldados. E quando ouviu atrás de si um cavaleiro mais veloz, cavalgando para interceptá-lo, soube tão bem quanto o próprio Grock que o novo mensageiro devia transportar o indulto do príncipe. Von Schacht, aquele jovem e valente oficial que parecia a própria encarnação duma tradição alemã mais generosa (e quase que inteiramente negligenciada nesta história), era merecedor do acidente que fizera dele o arauto de uma política mais generosa. Aproximou-se velozmente, com a habilidade e a nobreza que legaram à Europa o próprio termo cavalheirismo, e, numa voz tal qual a trombeta de um arauto, mandou que o outro parasse, esperasse e se voltasse. E von Hocheimer obedeceu. Ele parou, afrouxou a rédea, se voltou na cela; mas tinha na mão a carabina, manejada como fosse uma pistola, e atirou no rapaz à queima-roupa.

“Depois seguiu em frente, levando consigo a sentença de morte do polonês. Atrás dele, cavalo e cavaleiro haviam despencado pela lateral do viaduto, deixando desimpedida a estrada – pela qual avançava, por sua vez, o terceiro mensageiro, admirado com a aparente infinitude de sua jornada. Foi quando avistou, enfim, o inconfundível uniforme de hussardo como uma estrela branca e distante e também atirou. Só que não matou o segundo mensageiro, matou o primeiro.

“Foi por isso que nenhum mensageiro chegou vivo à cidade polonesa naquela noite. Por isso que o prisioneiro deixou vivo a prisão. Acha que eu estava errado em dizer que von Grock tinha dois soldados leais, um a mais do que o indicado?”

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Tradução: Rodrigo R. Carmo

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