Os três cavaleiros do apocalipse | parte II

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Paul Petrowski era daquelas pessoas nada práticas que são de prodigiosa importância na política prática. Sua força residia no fato de que, além de poeta nacional, era cantor internacional: dono de uma bela e poderosa voz com a qual interpretava as próprias canções patrióticas em metade das salas de concerto do mundo. Em seu país, é claro, era tocha e clarim de esperanças revolucionárias, especialmente à época, no tipo de crise internacional em que desaparecem os políticos práticos, sendo substituídos por gente mais ou menos prática do que eles. Porque o verdadeiro idealista e o autêntico realista têm ao menos uma coisa em comum: o amor pela ação. E o político prático vive de formular objeções práticas à ação. A obra do idealista pode ser inexequível e a do homem de ação, inescrupulosa; mas nem um nem outro constrói sua reputação fazendo nada. É curioso que esses dois tipos extremos ocupassem as duas extremidades daquela precipitosa estrada em meio aos charcos: de um lado, o poeta polonês aprisionado na cidade; do outro, o soldado prussiano comandando o acampamento.

Porque o marechal von Grock era um autêntico prussiano, não apenas inteiramente prático, mas inteiramente prosaico. Nunca lera uma linha de poesia sequer; mas não era bobo. Tinha aquele senso de realidade próprio dos soldados, o que o impedia de cair no erro asinino do político prático. Não zombava de visões; se limitava a odiá-las. Sabia que um poeta ou profeta podia ser tão perigoso quanto um exército. E estava convencido de que o poeta precisava morrer. Era seu tributo único à poesia – e era sincero.

Estava, no momento, sentado à mesa em sua tenda; o capacete com ponteira que sempre usava em público estava defronte a ele e sua enorme cabeça era calva, raspada rente ao couro cabeludo. A barba também era rente, e a única coisa que cobria o rosto era um par de óculos de lentes muito grossas, o qual emprestava uma aparência enigmática ao semblante pesado e caído. Voltou-se para um tenente que estava de pé ao seu lado, um alemão daqueles de cabelo descorado e rosto bolachudo, com olhos azuis esbugalhados que fitavam o nada.

— Tenente von Hocheimer, você disse que Sua Alteza chegaria esta noite ao acampamento?

— Sete e quarenta e cinco, marechal — respondeu o tenente, que parecia um tanto relutante em falar, como um grande animal que tivesse acabado de aprender um novo truque.

— Então há tempo suficiente — disse Grock — para enviá-lo com a ordem de execução antes que ele chegue. Devemos servir Sua Alteza de todas as maneiras, mas especialmente evitando aborrecimentos desnecessários. A revista das tropas lhe dará bastante com que se ocupar; cuide para que tudo esteja à sua disposição. Ele partirá depois de uma hora para o próximo posto avançado.

O tenente corpulento pareceu avivar parcialmente e esboçou uma continência.

— Certamente, marechal, devemos todos obedecer Sua Alteza.

— Eu disse que devemos todos servir Sua Alteza — corrigiu o marechal.

Com um movimento mais brusco que o usual, tirou os óculos de lentas grossas e colocou-os na mesa. Fossem os pálidos olhos azuis do tenente capazes de perceber tais coisas, ou, caso percebessem, fossem capazes de se abrir ainda mais, bem poderiam ter se arregalado diante da transformação promovida pelo gesto. Era como a remoção de uma máscara de ferro. No instante anterior, o marechal von Grock tinha a extraordinária aparência de um rinoceronte, com as pesadas bochechas e o queixo caindo em pregas coriáceas. Agora era um novo tipo de monstro: um rinoceronte com olhos de águia. O frio reflexo de seus velhos olhos deixariam claro para qualquer um que, dentro dele, havia algo que não era meramente pesado; que parte dele era feita de aço, não apenas de ferro. Porque todas as pessoas são animadas por um espírito, mesmo que seja um espírito maligno ou, de tão estranho para o comum dos cristãos, difícil de reconhecer como bom ou mau.

— Eu disse que devemos todos servir Sua Alteza — repetiu Grock. — Serei mais claro e direi que devemos todos proteger Sua Alteza. Não é suficiente para nossos reis serem nossos deuses? Não é suficiente serem servidos e protegidos? Somos nós quem devemos servir e proteger.

O marechal von Grock raramente falava – ou mesmo pensava, tal como gente de natureza mais teórica concebe o pensamento. E se descobrirá que, no geral, homens como ele, quando calham de pensar alto, preferem, no mais das vezes, falar com o cachorro. Condescendem mesmo, com certa satisfação, em usar palavras longas e argumentos elaborados diante do cachorro. Seria injusto comparar o tenente von Hocheimer com um cachorro; injusto com o cachorro, criatura muito mais sensível e vigilante. Seria mais apropriado dizer que Grock, num de seus raros momentos de reflexão, sentia-se confortável e seguro de refletir em voz alta na presença de uma vaca ou de um repolho.

— Mais de uma vez, na história de nossa casa real, o amo foi salvo pelos servos — continuou Grock —, que, com frequência, não foram recompensados senão com pontapés, ao menos do mundo exterior, que sempre despeja sentimentalismo contra o forte e o bem-sucedido. Mas fomos fortes e fomos bem-sucedidos, pelo menos. Maldisseram Bismarck por ter enganado até o próprio amo com o telegrama de Ems; mas isso fez do amo senhor do mundo. Paris foi tomada; Áustria, destronada; e nós ficamos seguros. Esta noite, Paul Petrowski morrerá; e nós, outra vez, ficaremos seguros. É por isso que o estou despachando neste exato momento com a sentença de morte. Você compreende que está transportando a ordem para imediata execução de Petrowski e que não deve retornar até que seja cumprida?

O inarticulado Hocheimer bateu continência; compreendia perfeitamente. E tinha algumas qualidades caninas, afinal: era corajoso como um buldogue e podia ser leal até a morte.

— Pegue um cavalo e parta imediatamente — prosseguiu Grock — e não permita que nada o atrase ou o impeça. Tenho plena certeza de que o tolo Arnheim vai liberar Petrowski ainda hoje se não receber mensagem nenhuma. Seja rápido.

O tenente bateu outra continência e deixou a tenda; e, montando um dos soberbos corcéis brancos que compunham o esplendor daquela esplêndida tropa, tomou a estreita via elevada, semelhante ao topo de uma muralha, que comandava o escuro horizonte, os difusos contornos e as mortiças cores daqueles extensos charcos.

Os últimos ecos dos cascos do cavalo se perderam na estrada; quase no mesmo instante, von Grock se levantou, pôs o capacete e os óculos e se encaminhou à entrada da tenda, mas por outra razão. Seu estado-maior, em trajes de gala, o esperava; e, desde as linhas mais distantes, já se ouviam as saudações rituais e as vozes de comando. Sua Alteza o príncipe havia chegado.

Sua Alteza o príncipe contrastava um bocado, pelo menos externamente, com os homens à sua volta; e, mesmo noutras coisas, era algo como uma exceção em seu mundo. Também usava um capacete com ponteira, mas de outro regimento, preto com reflexos de aço azulado; e havia algo meio incongruente, meio apropriadamente imaginativo, dum jeito antiquado, na associação do capacete com a longa e escura barba esvoaçante em meio a todos aqueles prussianos de rosto pelado. Como que para combinar com a longa e escura barba esvoaçante, vestia um longo e escuro manto esvoaçante de cor azul no qual resplandecia uma estrela da mais alta ordem real; rematava um uniforme preto. Embora tão alemão quanto qualquer outro, era um tipo muito diferente de alemão; e alguma coisa em seu rosto orgulhoso e absorto era consonante com a lenda de que a grande paixão de sua vida era a música.

Na verdade, o sisudo Grock estava inclinado a vincular a essa remota excentricidade o, para ele, altamente irritante e exasperante fato de não proceder o príncipe à imediata e apropriada revista e recepção pelas tropas, já labirinticamente posicionadas de acordo com a etiqueta militar daquela nação; em vez disso, precipitou-se impacientemente no assunto que menos interessava a Grock: o assunto daquele infernal polonês, sua popularidade e o perigo que representava; porque o príncipe havia escutado canções do sujeito em metade das casas de ópera do continente.

— É loucura cogitar a execução de um homem desses — disse o príncipe, franzindo o cenho sob o capacete preto. — Ele não é um polonês comum: é uma instituição europeia. Ele seria lastimado e deificado por nossos aliados, por nossos amigos, até por nossos compatriotas. Quer ser tratado como as possessas que mataram Orfeu?

— Alteza — argumentou o marechal —, ele seria lastimado, mas estaria morto; seria deificado, mas estaria morto. O que quer que pretendesse fazer, jamais faria; o que quer que estivesse fazendo, deixaria de fazer. A morte é um fato inelutável e eu sou um apreciador dos fatos.

— Você não sabe nada do mundo? — reclamou o príncipe.

— Não me importa o mundo — respondeu Grock — para além das fronteiras da pátria.

— Deus do céu — exclamou Sua Alteza —, você enforcaria Goethe por uma desavença com Weimar!

— Pela segurança de sua casa real — replicou Grock —, não hesitaria um só instante.

— O que isso quer dizer? — indagou o príncipe, ríspida e abruptamente, depois de um breve silêncio.

— Quer dizer que não hesitei um só instante — retorquiu com firmeza o marechal. — Já enviei ordens para que Petrowski seja executado.

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