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A entrada do inferno

Originalmente publicado em Hermitary em 27 de maio de 2022

Reigen Eto (1721-1785) era aluno do renomado mestre zen Hakuin. Em dado momento, Reigen deixou o templo de Hakuin para buscar a solidão das montanhas. Durante dez anos, viveu como eremita, dedicando-se aos ensinamentos e à práxis de seu mestre. Um dia, soube que Hakuin estava ensinando num retiro próximo. Reigen Eto deixou as montanhas para assistir à palestra e ficou de tal modo inspirado que retomou seus estudos com Hakuin. No devido tempo, Hakuin declarou a iluminação de Reigen. Este assumiu um templo em Kyoto e lá introduziu os ensinamentos de Hakuin, que se tornaram muito populares.

Hakuin era pintor e Reigen Eto seguiu o mesmo caminho. A pintura era uma arte precisa, adequada para a singeleza da expressão zen. Reigen buscou temas usuais, pintando Bodidarma, Hotei, o monte Fuji e elementos da natureza como corvos e pinheiros. Uma obra menos conhecida e seu objeto, porém, podem ser seu trabalho mais persuasivo.

In 1543, o Ocidente invadiu o Japão. Uma belonave portuguesa atracou na ilha de Tanegashima e desembarcaram dois marujos portando armas de fogo. A ilha se tornaria o principal centro de comércio português no Japão – entendendo-se por “comércio” a extorsão, a violência e o uso da força contra os habitantes indefesos. Os japoneses lembravam do objeto metálico que era a fonte do poder dos intrusos: a arma de fogo. Desprovidos de conhecimento sobre e experiência com tal artefato, o nome da ilha – a palavra “tanegashima” – tornou-se sinônimo de “arma de fogo”. E este é o tema da pintura de Reigen Eto chamada “A arma de fogo”, obra curiosamente obscura em meio a seu próprio corpus e a pinturas zen históricas.

A obra – não reproduzida na internet quando da postagem deste texto – foi pintada de modo estilizado, com um haicai em cima e um objeto (a arma, neste caso) na parte de baixo. A arma foi pintada em rápidas pinceladas, evocando os traços apagados de tinta preta chamados de “branco voador” pelos calígrafos. Lê-se no haicai: “O estampido / da arma é a entrada / do inferno”.

O falecido John Daido Loori, coeditor de The Zen Art Book, faz o seguinte comentário sobre a pintura de Reigen Eto: “Aqui estamos, mais de dois séculos e meio depois, e a única diferença é que nossos instrumentos de destruição se tornaram mais sofisticados e eficientes, ao passo que nossa maneira de conceber o universo e nossa própria existência permaneceu virtualmente estática”.

Originalmente publicado em Hermitary em 27 de maio de 2022

Janelas

A janela aberta” (“The Open Window”), de Saki, foi publicada originalmente na Westminster Gazette em 18 de novembro de 1911 e posteriormente incluída na coletânea Beasts and Super-beasts, de 1914. É uma divertida anedota baseada no conceito de narrador não confiável – ou, neste caso, uma narradora nada confiável e boa de improviso. É um dos contos mais antologizados de H. H. Munro, e com bom motivo. Também recebeu algumas adaptações audiovisuais, a exemplo do curta The Open Doors (2004), dirigido por James Rogan e estrelado pelo ótimo Michael Sheen (Maldito Futebol Clube, Masters of Sex, Good Omens etc.).

A janela fechada” (“The Boarded Window”), de Ambrose Bierce, foi inicialmente publicada em The San Francisco Examiner em 12 de abril de 1891 e incluída, no mesmo ano, em Tales of Soldiers and Civilians. É uma prima-irmã de “Os olhos da pantera”, também de Bierce, e aborda um tema (e medo) recorrente em Poe: o da catalepsia.

Por fim, “A janela trancada” (“The Closed Window”), do poeta, ensaísta e acadêmico inglês Arthur Christopher Benson (1862-1925), foi publicada originalmente em The Hill of Trouble and Other Stories, de 1903. Arthur era irmão de Robert Hugh e de Edward Frederic Benson e, assim como os irmãos, gostava de – e escrevia – ghost stories. A tal “janela trancada” é uma passagem para outro mundo habitado por seres pálidos que atraem mortais com promessas de ouro. Parece que Benson tinha lendas de fadas em mente quando escreveu o conto, que tem uma pegada definitivamente weird.

Quatro novos contos: Saki, Merritt, Harvey

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Sredni Vashtar e Gabriel-Ernest são histórias clássica de Hector Hugh Munro (1870-1916), mais conhecido como Saki. Munro perdeu a mãe ainda bebê; ele e os irmãos – Ethel Mary e Charles Arthur – foram deixados pelo pai, um oficial inglês na Birmânia, aos cuidados da avó paterna e das tias, Charlotte e Augusta. Estas serviriam, décadas depois, de modelo para muitas das personagens femininas de Saki, entre elas a sra. de Ropp de “Sredni Vashtar”. Muito mais gentil é a tia de “Gabriel-Ernest”, onde o problema é um lobisomem juvenil.

A vestimenta do deus de pedra (“The Pool of the Stone God”) foi originalmente publicado em 1923 em American Weekly, revista editada pelo autor do conto, A. Merritt, que, possivelmente por isso, utilizou o pseudônimo W. Fenimore. Merritt fazia parte do círculo de correspondentes de Lovecraft e “… Stone God” guarda semelhanças com “O cão de caça” (“The Hound”), além de resgatar elementos de uma história anterior de Abraham muito apreciada por Howard, “The Moon Pool”.

No calor de agosto (“August Heat”), do inglês William Fryer Harvey (1885-1937), apareceu originalmente em Midnight House and Other Stories, de 1910. Dois homens que nunca se viram são enredados num estranho caso de premonição – ou não, o calor é “de enlouquecer qualquer um”. O conto é muitas vezes descrito como uma ghost story, embora não tenha nenhum fantasma. Foi adaptado em quadrinhos por E. Nelson Bridwell e Alfredo Alcala no número 12 de Secrets of Sinister House, da DC Comics, de 1973 (cuja capa ilustra este post).

Ilustração: Secrets of Sinister House nº 12, julho de 1973. Capa de Luis Dominguez. Direitos pertencentes a DC Comics.

La Mesnie Hellequin, o cortejo fantasma do arlequim

“O ancestral do arlequim da commedia del’arte”, escreve Emily K. Yoder, “era conhecido na Europa medieval por diferentes nomes e aparece no ‘Inferno’ de Dante como o travesso demônio Alichino. […] Alichino era o lendário chefe demoníaco de um infernal tropel notívago; como Hellequin, liderava a temível Cavalgada Fantasma da superstição escandinava, conhecida na França medieval como Mesnie Hellequin, uma tropa de espíritos malignos ou almas dos mortos que cavalga pelo céu noturno em companhia de cães espectrais, assombrando lugares ermos e aterrorizando as pessoas.”

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No século XII, o cronista britânico e monge beneditino Oderic Vitalis registra a história de um padre que, voltando de visita a um doente de sua paróquia na noite de Ano Novo, escuta o barulho de um “exército imenso”. Escondido, observa a passagem de uma longa procissão de mortos a cavalo, demônios e pecadores pagando suas penas. O padre reconhece a turba como a familia Herlechini, sobre a qual ouvira falar, mas até então desacreditara. Ronald Hutton credita histórias do tipo, comuns em toda a Europa, à “crescente especulação quanto ao destino dos mortos” em um período que viu o nascimento do conceito de purgatório como lugar físico. A tropa de Herlechin seria uma espécie de “purgatório itinerante”.

Sugestões quanto à origem do nome “He(r)llequin” apontam para uma possível inspiração na deusa nórdica Hel

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… ou no mítico rei britânico Herla, cuja história é contada por Walter Map (c.1140-c.1209) em seu De Nugis Curialum. Herla, acompanhado de grande comitiva, teria viajado ao mundo inferior (ou alguma espécie de reino subterrâneo) para o casamento de um rei anão – ou fauno, já que é descrito como peludo e dotado de cascos de bode. Passados três dias, prepara-se para voltar a seu próprio reino; recebe do anfitrião, entre outros presentes, um pequeno sabujo ao qual é atrelado um alerta: nem Herla nem demais membros de sua companhia devem apear antes que o cãozinho, por vontade própria, toque o chão.

De volta à superfície, o rei se dirige a um velho pastor e pede notícias de sua rainha, mas o homem mal consegue entendê-lo: duzentos anos se passaram desde as invasões saxônicas e o bretão caiu em desuso. O pastor desconhece a tal rainha, cujo nome só ouvira em histórias a respeito do velho rei Herla, desaparecido havia muito tempo. Confusos e chocados, alguns cavaleiros, esquecendo o aviso do rei anão, apeiam; pisando no chão, imediatamente viram pó. (São evidentes as semelhanças com a narrativa da viagem de Oisín a Tír na n-Óg.) Herla ordena que os demais permaneçam montados até que o sabujo salte de seus braços para o chão – mas isso nunca acontece. O rei e sua comitiva, chamados de Herlethingi, veem-se, então, condenados a vagar pelas Ilhas Britânicas sem paz nem descanso. Segundo Map, teriam sido vistos pela última vez nas proximidades de Gales e Hereford no primeiro ano do reinado de Henrique II, quando, acossados por um grande grupo armado, cavalgaram para dentro do rio Wye e desapareceram.

Importa dizer que, na qualidade de líder da “marcha dos condenados”, Herla é identificado muitas vezes com Odin (Woden), que, na tradição germânica, é geralmente apontado como chefe da Cavalgada Fantasma. Mas é válido também lembrar que o termo “Wild Hunt” – geralmente traduzido como Caçada Selvagem, que não é de minha preferência – é uma criação moderna (século XIX) usada para agrupar histórias que não se referem necessariamente aos mesmos temas, ainda que tenham elementos em comum.

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De volta a Yoder: “O arlequim tem outras ressonâncias sinistras como espírito ctônico do submundo, ‘ligado aos deuses do destino’, símbolo das forças de tânatos ou do desejo de morte. Edwin S. Shneidman, discutindo a conexão do arlequim com a morte, diz: ‘De fato, ser amada/o pelo arlequim era estar casada/o com a morte’”.

Fontes / para ler mais:

Dorgival Soares. Arlequim. Balaio Caótico.

Emily K. Yoder. The demon harlequin in Conrad’s hell. Conradiana, v. 12, nº 2, p. 88-92, 1980.

Graeme Cooke. King Herla & the Wild Hunt. Tales of Britain and Ireland.

Mark Truesdale. King Herla and the Wild Hunt in Twelfth-Century England and Wales. Folklore Thursday.

Robert Hutton. The Wild Hunt and the Witches’ Sabbath. Folklore, v. 125, nº 2, p. 161-178, 2014.

Willian Hand Browne. “Harlequin” and “Hurly-Burly”. The Sewanee Review, v. 18, nº 1, p. 23-31, 1910.

Imagens: Arlequin, Paul Cézanne; Hel, Johannes Gehrts; Åsgårdsreien, Peter Nicolai Arbo, coleção da Nasjonalgalleriet, Oslo; todas em domínio público, via Wikimedia Commons.

A saga de Grettir e Glámr

A saga de Grettir, o Forte (Grettis Saga ou Grettla) é a última das tradicionais sagas familiares islandesas (Icelander’s Sagas) compostas durante os séculos XIII e XIV e, diz a Britannica, “uma das melhores”. “Distingue-se pelo caráter problemático e complexo de seu herói fora da lei e pela hábil integração à narrativa de numerosos motivos folclóricos”.

Depois de matar um homem aos 14 anos, Grettir Ásmundarson, valente e generoso aspirante a herói, ainda que impetuoso e cabeça-dura, é proscrito por um período de três anos. Viaja para a Noruega, onde ganham fama seus atos de bravura. De volta à Islândia, enfrenta o morto-vivo Glámr, que o amaldiçoa com má sorte, debilidade e medo do escuro. Tempos depois, durante expedição à Noruega, incendeia acidentalmente uma casa e mata o filho de um chefe local. Novamente proscrito, vive em fuga, perseguido por parentes de suas vítimas, outros fora da lei – há um prêmio por sua cabeça –, trols e outras criaturas mágicas. Embora precise se esconder, o crescente medo da escuridão faz com que busque companhia durante os intermináveis invernos sem sol. Termina acuado por seus inimigos na ilha de Drangey, no norte da Islândia, enfeitiçado e morto. A saga completa pode ser lida em The Icelandic Saga Database.

O episódio envolvendo Glámr (ou Glam) é dos mais famosos da saga: dele deriva, em grande parte, a posterior miséria de Grettir. O próprio Glámr é uma figura e tanto. Vivo, tem traços de lobisomem: cabelo cinza-lobo, olhos pálidos, grandes e fitos, dentes muito brancos e protrusos; é alto e “forte como um trol”. Morto, torna-se um draugr – criatura típica do folclore escandinavo que provavelmente atingiu o auge de sua popularidade com The Elder Scrolls V: Skyrim.

A saga de Grettir foi aparentemente redescoberta por autores anglófonos entre o final do século XIX e o começo do XX, resultando em múltiplas versões do episódio em questão. Em 1863, o reverendo Sabine Baring-Gould (1834-1924) – britânico, famoso por seu Livro dos Lobisomens – incluiu a história, muito apropriadamente, em Iceland: Its Scenes and Sagas. Em 1904, sob o título “Glámr” (clique para ler minha tradução), ela reapareceu, levemente alterada, em seu A Book of Ghosts. Nesse intervalo, o escocês Andrew Lang (1844-1912) publicou sua versão em The Book of Dreams and Ghosts (1897) e o norte-americano Frank Norris (1870-1902) escreveu o conto “Grettir at Thorhall-stead” (1902) – que também pretendo disponibilizar em algum momento.

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Uma curiosidade: embora esta seja claramente sua natureza, Glámr em nenhum momento é chamado de draugr, nem na saga original (diferente de Kar, o velho, a quem Grettir elimina durante seu exílio na Noruega) nem nas versões modernas. Nestas, os autores alternam, no mais das vezes, entre os termos “fantasma” e “vampiro”, nenhum deles particularmente apropriado. Obviamente, o modus operandi de Glámr – que aproveita o longo inverno sem sol para suas depredações – foi emprestado pelos vampiros de 30 dias de noite, HQ de Steve Niles e Ben Templesmith (e adaptada para o cinema). O termo “trol” é também bastante utilizado para se referir a Glámr, mas seu sentido é mais genérico.

Outra: nem Baring-Gould nem Norris são muito específicos quanto ao assassino de Glámr, embora, é claro, estabeleçam desde cedo que os pastos de Thorhall são mal-assombrados – não é outro o motivo da contratação do sueco. Lang, contudo, a exemplo da saga original, credita a morte a um “espírito maligno” que habitava as colinas e que teria, por sua vez, sido também mortalmente ferido pelo pastor de ovelhas, motivo pelo qual não volta a figurar na narrativa.

Leia “Glámr”, de Sabine Baring-Gould, em tradução minha.

Imagem: Ilustrações de Joseph J. Gould (1880–1935) para “Grettir at Thorhall-stead” (Everybody’s Magazine, abril de 1903).

O puxadinho assombrador: Madeline Yale Wynne, “O quartinho”

Casas mal-assombradas são um dos grandes clichês do horror, sobretudo daquilo que é comumente identificado como terror gótico. Não raro, nesses imóveis habitados por almas penadas, demônios e afins, um cômodo se destaca como centro das atividades espectrais – uma ala da casa, talvez, ou ainda um quarto na torre. “The Little Room” – aqui traduzido como “O quartinho” – subverte esse tema ao apresentar um cômodo que, em vez de assombrado, é assombrador.

Não é um espaço desagradável, esse cantinho penado. Pelo contrário. Mesmo assim, é capaz de criar intriga e desavença ao desafiar o próprio senso de realidade dos visitantes da casa de fazenda que assombra. Sim, porque as proprietárias parecem nada notar. “A casa é exatamente a mesma desde que foi construída; não houve mudanças, não até onde sabemos”.

Publicado originalmente em 1895 na Harper’s Magazine, o conto foi o grande sucesso literário de sua autora, Madeline Yale Wynne (1847-1918). Filha do fundador da Yale Lock Manufacturing Company, Madeline foi artesã e fundadora da Deerfield Society of Arts and Crafts, em Massachusetts, um coletivo composto principalmente por mulheres. Teve outros trabalhos publicados, tanto ficções quanto ensaios em sua área de expertise, mas “The Little Room” permaneceu sua obra mais celebrada, sendo recentemente reconhecida pelo fundador da American Literature Association, Alfred Bendixen, como “um dos mais efetivos quebra-cabeças já escritos”.

A história é “elegantemente ambígua”, nas palavras de Anne M. Pillsworth, e deixa a cargo do leitor a interpretação do misterioso fenômeno que é o quartinho. Porém, possivelmente atendendo a leitores insatisfeitos com a falta de respostas e/ou o final um tanto quanto súbito do conto, a autora escreveu uma continuação, apropriadamente chamada “The Sequel to the Little Room”, que, infelizmente, não tem a mesma qualidade ou o mesmo charme da história original. Vale pela curiosidade (ou pela paz de espírito, se você for daqueles que precisam de uma explicação definitiva para os mistérios da vida, do universo e tudo o mais).

Leia “O quartinho”, de Madeline Yale Wynne, em tradução minha.

O espectro abana o rabo: Stephen Crane, "O cão preto"

O poeta, novelista, contista e jornalista estadunidense Stephen Crane (1871-1900), reconhecido por críticos modernos como um dos mais inventivos de sua geração, era um apaixonado por cães. Uma de suas primeiras histórias, a primeira que enviou a um periódico para avaliação, foi sobre um garoto atacado por um urso e salvo por seu cão. O conto, “Jack”, acabou não sendo publicado, e apenas fragmentos sobreviveram. Mas os fatos a respeito de suas amizades caninas permaneceram.

Leia O cão preto, de Stephen Crane, em tradução minha.

Consta que ele e a esposa, Cora, em seus quatro anos de casamento, chegaram a ter cinco cachorros de uma só vez. Quando estiveram na Grécia, cobrindo a guerra dos Trinta Dias (1897, entre o Reino da Grécia e o Império Otomano) para o New York Journal — Cora é reconhecida como a primeira mulher correspondente de guerra —, resgataram um filhote perdido que foi imediatamente batizado de Velestino, o cão jornalista. Chegando a Atenas, Crane enviou ao jornal um artigo batizado “The Dogs of War” em que descrevia o resgate e seus desdobramentos. “Antes mesmo de chegar a Atenas”, escreveu Crane, “ele era facilmente o cão mais famoso da Grécia”. Velestino voltou com o casal à Inglaterra, onde moravam à época.

Um colega de faculdade lembrou, após a prematura morte do autor de O emblema vermelho da coragem, que, para Crane, “a reação instintiva de um cão a um humano recém-conhecido era prova infalível de caráter”. A Joseph Conrad, com quem travou amizade, dizia: “seu filho tem de ter um cão, um menino precisa ter um cão”.

“The Black Dog”, publicada originalmente em 1892 no New York Tribune, faz parte de um conjunto de contos humorísticos situados na região das montanhas Catskills no condado de Sullivan, Nova York, e estrelados por quatro personagens sem nome identificados apenas como “baixinho”, “gorducho”, “altão” e “calado” (os dois últimos, apenas figurantes neste conto). Embora fosse alegadamente admirador de ghost stories, Crane fez aqui uma paródia, satirizando, segundo alguns, as histórias de Ambrose Bierce.

Cães fantasmas, embora nem sempre pretos, são recorrentes na literatura de horror e mistério e no folclore de diversas regiões, com destaque para as ilhas britânicas, onde a variedade desses espectros – que atendem por nomes como Black Shuck, Hairy Jack, Church Grim e The Devil's Dandy Dogs, entre muitos outros – é impressionante. Lendas de cães pretos fantasmas em Dartmoor inspiraram sir Arthur Conan Doyle a criar uma das mais famosas aventuras de Sherlock Holmes, O cão dos Baskerville.

Leia O cão preto, de Stephen Crane, em tradução minha.

Oisín em Tír na n-Og… ou Hy-Brasil?

“Existe um país chamado Tír-na-n-Og, que significa Terra dos Jovens, pois a velhice e a morte não o descobriram,” escreve o poeta irlandês W. B. Yeats (1865-1939) em seu Fairy and folk tales of the Irish peasantry. “Um homem apenas esteve lá e voltou. O bardo Oisín, que cavalgou um corcel branco por sobre as ondas em companhia de sua fada Niamh, lá viveu durante trezentos anos e depois voltou à procura de seus companheiros. No momento em que seus pés tocaram o solo, seus trezentos anos se lhe abateram, ele se encurvou e sua barba arrastou no chão. Antes de morrer, descreveu sua estada na Terra da Juventude a Patrício.”1

Essa é uma versão resumida da viagem de Oisín à Terra da Juventude, composta originalmente pelo igualmente poeta, igualmente irlandês Michael Comyn (Micheál Ó Coimín) por volta de 1750. A balada “Laoi Óisín ar Tír na nÓg” se inscreve na tradição do ossianismo, poesia lírica e narrativa irlandesa – com alguns exemplares encontrados também na Escócia – que se ocupa da lenda e dos feitos de Finn Mac Cumhaill (às vezes Mac Cool) e seus guerreiros, os Fianna Éireann. Ossian (gaélico Oisín), filho de Finn, era o bardo-mor dos Fianna, e embora outros dos chamados poemas ossiânicos tratem de sua vida sobrenaturalmente longa e de seus diálogos – ou disputas – com são Patrício, a balada de Comyn é única em lidar com a viagem ao paraíso terrestre de Tír na nÓg (sim, espere grafias diferentes a depender da fonte) e com sua união com Niamh do Cabelo Dourado.2 Ela serviu também de inspiração para “The Wanderings of Oisín”, do supracitado Yeats, publicado em 1889.

Um relato mais detalhado dos feitos de Oisín na Terra da Juventude, extraído de The High Deeds of Finn and other Bardic Romances of Ancient Ireland e traduzido por mim, pode ser acessado no link.

Agora; Tír na n-Og não é o único paraíso terrestre mencionado nos mitos e lendas da Irlanda. Outros nomes – tais como Tír na mBeó, Terra dos Viventes; Tír na mBan, Terra das Mulheres; Magh Mell, Planície dos Prazeres; Mag Mór, A Grande Planície; Tír Tairngiri, Terra Prometida – são usados com semelhante sentido e, segundo a acadêmica Mireann Ní Bhrolcháin, falecida em 2015, essa variação pode muito bem indicar a “existência” de vários “outros mundos”.3

Não é uma opinião unânime, contudo; a escritora e jornalista Eleanor Hull (1860-1935), por exemplo, escreve sobre a Irlanda pré-cristã:

“Pensavam que alguns mortais favorecidos podiam viajar a uma terra de fadas cheia de palácios e música, de belas mulheres, e depois voltar a este mundo e seguir com sua vida normal. Essa terra era chamada Tír na n-Og ou Terra da Juventude, porque lá ninguém envelhecia; ou, às vezes, Magh Mell, a Planície dos Prazeres, porque muitos eram seus encantos e riquezas. Ficava muito longe, do outro lado do mar ocidental, onde o sol se punha, ou, como às vezes se pensava, nos fundos dos lagos ou na casa do deus do oceano, Manannan mac Lir. Às vezes, chegava-se de barco; noutras, num corcel mágico cujos cascos jamais tocavam a terra.”4

Nessa perspectiva, de um único “outro mundo” que atende por diferentes nomes, Oisín perde a singularidade apontada por Yeats: “Connla do Cabelo Dourado lá esteve,” escreve Hull, “e Teigue, filho de Cian, […] e Cuchulain, para falar com Fand, rainha de Manannan”.

E aqui chegamos a um ponto interessante, citado lá no título deste post: porque Yeats compartilhava da ideia de Hull, de quem foi contemporâneo, quanto à unicidade do éden celta. Mas ele identifica Tír na n-Og com outra terra mítica: Hy-Brasil.

Denominada às vezes “Atlântida irlandesa”, a ilha de Hy-Brasil (ou HyBrazil, Brazil, Insula de Berzil, Ui Breasail) seria “uma massa de terra circular a oeste da Irlanda, no norte do Atlântico, que passa períodos cíclicos de sete anos oculta sob grossa neblina – ao fim dos quais se revela por um único dia aos olhos, mas se mantém inalcançável aos navegantes”.5 A ilha misteriosa aparece mesmo em diversas cartas náuticas dos séculos XIII a XVI, embora sua localização varie bastante: “um mapa da Catalunha de 1325-1330, no mapa de Dulcert de 1339, no mapa dos irmãos Pizagani de 1375-1378, no mapa do cartógrafo veneziano Andrea Bianco de 1436 (onde já se menciona explicitamente o mar dos Sargaços). Esta ilha surge também no mapa atlântico do cartógrafo veneziano Zuane Pizzigano e no mapa anônimo chamado de Weimar, ambos de 1424 […]”.6

Expedições foram organizadas, partindo principalmente da Irlanda e da Inglaterra, na tentativa de localizar a ilha fantasma. E há relatos de pessoas que teriam, realmente, encontrado Hy-Brasil. O mais famoso conta que, em 1674, o capitão John Nisbet e sua tripulação navegavam em meio à neblina a oeste da costa irlandesa. Deram, então, com uma ilha, onde identificaram um castelo, cavalos e rebanhos bovino e ovino. Chamaram no castelo, mas não houve resposta. À noite, foram expulsos da praia, onde haviam acendido uma fogueira, por um “barulho terrível” e retornaram ao navio. No dia seguinte, de volta à praia, encontraram um grupo de homens vestidos em roupas antiquadas e falando “à moda antiga”; afirmaram que eram prisioneiros no castelo e que a fogueira acesa na noite anterior havia “quebrado o feitiço” de seu aprisionamento, fazendo desabar o cárcere. Os libertos também confirmaram que a ilha era, realmente, “O Brazile”. Quando Nisbet chegou a Killybegs com os resgatados, um segundo navio, sob comando de Alexander Johnson, partiu para a ilha misteriosa; ao retornar, confirmou a história do capitão e seus tripulantes.7

Bom, e onde entra Yeats nisso? Bem, ele escreve: “Desde [o retorno de Oisín], muitos a viram em diferentes lugares; alguns nos fundos dos lagos, donde ouviram subir um vago badalar de sinos; outros mais, olhando desde os penhascos ocidentais, a viram ao longe, no horizonte” (grifo meu). Além disso, inclui na seção T’yeer-na-n-Oge (eu disse…) do volume por ele editado o poema “Hy-Brasail – The Isle of the Blest”, do novelista, poeta e dramaturgo Gerald Griffin (1803-1840).8

O interesse de Hy-Brasil para nós, em Pindorama, é óbvio. E há diversas especulações a respeito de uma suposta relação entre seu nome e aquele dado, por fim, à ilha de Vera Cruz.9 Teria Oisín visitado a Terra Brasilis?

Leia a tradução completa da introdução escrita por W. B. Yeats para T’yeer-na-n-Oge, extraída do livro Fairy and folk tales of the Irish peasantry.

Leia Oisín na Terra da Juventude.


1 W. B. Yeats. Fairy and folk tales of the Irish peasantry. Project Gutenberg, 28 out. 2010. [Voltar]

2 Ossianic ballads. Encyclopedia Britannica, 16 ago. 2012; Michael Mac Mahon. Micheál Ó Coimín. Clare’s Gaelic Bardic Tradition, s. d. [Voltar]

3 Citada em Dominique Santos. Uma introdução à escatologia hibérnica: algumas considerações a partir dos textos da tradição hiberno-latina. Revista Brasileira de História das Religiões, ano VIII, nº 24, p. 221-233, jan.-abr. 2016. [Voltar]

4 Eleanor Hull. Pagan Ireland. 2. ed. Dublim: M. H. Gill & Son; Waterford, 1908. (Epochs of Irish History, I.) [Voltar]

5 Bruno Vaiano. Conheça Hy-Brasil – e mais 5 lugares que só existiram em mapas. Superinteressante, 15 ago. 2017. [Voltar

6 Maria Fernanda Garcia. “Hy-Brasil”, a ilha que aparecia nos mapas e sumiu misteriosamente. Observatório do Terceiro Setor, 17 jul. 2020. [Voltar]

7 Sean Lynch. Preliminary Sketches for the Reappearance of HyBrazil. Utopian Studies, v. 21, nº 1, p. 5-15, 2010. [Voltar]

8 W. B. Yeats, 2010, op. cit. [Voltar]

9 Brasil (ilha mítica). Wikipedia, s.d. [Voltar]

Atualizando Asimov: as (vinte e) três leis da robótica

As três leis da robótica

Muitos fãs de ficção científica sabem de cor as três leis da robótica preconizadas por Isaac Asimov (1920-1992) para garantir a convivência pacífica entre humanos e robôs:

  1. Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal.
  2. Um robô deve obedecer as ordens dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a primeira lei.
  3. Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com as leis anteriores.

Posteriormente, Asimov acrescentou ainda a “lei zero”: um robô não pode causar mal à humanidade ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra algum mal.

Essas leis fictícias, que apareceram pela primeira vez em 1942, são creditadas à 56ª edição do Manual de Robótica, datada de 2058 d.C. No entanto, já em 2017, avanços tecnológicos reais inspiraram a proposição de princípios e parâmetros mais elaborados para a continuidade do desenvolvimento de inteligências artificiais.

Os Princípios de Asilomar para IA

No começo de 2017, participantes do Beneficial AI 2017 Conference propuseram 23 princípios para guiar o desenvolvimento produtivo, ético e seguro da pesquisa em inteligência artificial.

Cada um dos princípios teve de ser aprovado por, no mínimo, 90% dos especialistas presentes, incluindo roboticistas, filósofos, físicos, economistas etc. Aparentemente, nenhum escritor de FC.

Os Princípios de Asilomar para IA são os seguintes:

Questões de pesquisa

  1. Objetivo da pesquisa: O objetivo da pesquisa em IA deve ser não criar inteligência não direcionada, mas inteligência benéfica;
  2. Financiamento da pesquisa: Investimentos em IA devem ser acompanhados pelo financiamento a pesquisas que garantam seu uso benéfico, incluindo questões "espinhosas" envolvendo ciência da computação, economia, direito, ética e estudos sociais, tais como:
    • Como podemos tornar os sistemas IA altamente robustos de forma que eles façam o que queremos sem apresentar defeitos ou serem hackeados?
    • Como podemos promover a prosperidade através da automação ao mesmo tempo que resguardamos os recursos e os propósitos das pessoas?
    • Como atualizar nossos sistemas legais para serem mais justos e eficientes, para acompanharem o ritmo da IA e gerenciar os riscos associados à IA?
    • Como definir os valores que a IA deve seguir e que status ético e legal ela deve ter?
  3. Relação ciência/legislação: Deve haver um relacionamento construtivo e saudável entre pesquisadores de IA e legisladores.
  4. Cultura de pesquisa: Uma cultura de cooperação, confiança e transparência deve ser estimulada entre pesquisadores e desenvolvedores de IA.
  5. Evitar disputa: Equipes desenvolvendo IA devem cooperar ativamente para evitar atalhos em padrões de segurança.

Ética e valores

  1. Segurança: Sistemas IA devem ser seguros e protegidos por toda a sua vida útil e isso deve ser passível de verificação quando aplicável e viável.
  2. Transparência das falhas: Se um sistema IA causar algum tipo de dano, deve ser possível identificar o porquê.
  3. Transparência legal: Qualquer envolvimento de um sistema autônomo em uma decisão jurídica deve prover uma explicação satisfatória e auditável por uma autoridade humana.
  4. Responsabilidade: Designers e construtores de sistemas de IA avançados são responsáveis nas implicações morais do seu uso, mal uso e ações, com responsabilidade e oportunidade para tratar essas implicações.
  5. Alinhamento de valores: Sistemas IA altamente autônomos devem ser projetados de forma que seus objetivos e comportamentos sejam asseguradamente alinhados com os valores humanos ao longo de toda a sua operação.
  6. Valores humanos: Sistemas IA devem ser projetados e operados de forma compatível com os ideais de dignidade humana, direitos, liberdade e diversidade cultural.
  7. Privacidade pessoal: As pessoas devem ter direito de acessar, gerenciar e controlar os dados que geram, tendo em vista o poder dos sistemas IA para analisá-los e utilizá-los.
  8. Liberdade e privacidade: A aplicação de IA sobre dados pessoais não deve restringir de forma injustificada a liberdade das pessoas de forma real ou percebida.
  9. Benefício compartilhado: Tecnologias IA devem beneficiar e empoderar a maior quantidade de pessoas possível.
  10. Prosperidade compartilhada: A prosperidade econômica criada via IA deve ser compartilhada largamente, beneficiando toda a humanidade.
  11. Controle humano: Humanos devem escolher como e quando delegar decisões para sistemas IA a fim de atingir os objetivos escolhidos pelos humanos.
  12. Não subversão: O poder conferido aos sistemas IA altamente avançados deve respeitar e aprimorar os processos sociais e cívicos dos quais a sociedade sadia depende, nunca subvertendo-os.
  13. Corrida armamentista em IA: Uma corrida armamentista para armas autônomas letais deve ser evitada.

Questões de longo prazo

  1. Precauções com capacidade: Não havendo consenso, devemos evitar inferências sobre os limites da capacidade de sistemas IA no futuro.
  2. Importância: IAs avançadas podem representar uma mudança profunda na história da vida sobre a Terra e devem ser planejadas e gerenciadas com cautela e recursos proporcionais.
  3. Riscos: Os riscos apresentados por sistemas IA, especialmente os riscos catastróficos ou existenciais, devem ser assunto de planejamento e esforços de mitigação proporcionais aos seus impactos esperados.
  4. Autoaprimoramento recursivo: Sistemas IA projetados para automaticamente se melhorarem ou se replicarem de forma que possam rapidamente promover aumento em quantidade ou qualidade devem ser assunto de rigorosas medidas de controle e segurança.
  5. Bem comum: Superinteligência deve ser unicamente desenvolvida a serviço de ideais éticos amplamente compartilhados e para o benefício de toda a humanidade, em vez de um Estado ou organização.

Fonte: Future of Life Institute
Tradução dos princípios: AiNews Network

Vida na morte: "O retrato oval", de Poe

O norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849), poeta, contista, autor de um único romance (“A narrativa de Arthur Gordon Pym”), foi um homem assombrado por muitos demônios, nem todos originados de sua imaginação. Apesar de ser conhecido principalmente por suas histórias de terror, é tido como criador da ficção policial e também contribuiu para os gêneros da fantasia e da ficção científica.

Leia o conto O retrato oval, de Edgar Allan Poe

Entre suas obras mais conhecidas estão o poema “O corvo” e os contos “O coração delator”, “A queda da casa de Usher” e “A máscara da morte rubra”, todos constantemente antologizados e homenageados por outros escritores.

O conto que viria a ser “The Oval Portrait” foi publicado originalmente em abril de 1842 sob o título “Life in Death”. Este foi posteriormente reduzido, excluídos alguns parágrafos iniciais que explicavam como o narrador havia sido ferido (numa escaramuça com bandidos) e que havia usado ópio “para sarar a dor” (oi, Zeca Baleiro). A nova versão resultou num dos contos mais curtos de Poe e foi publicada em 1845.

Era o retrato de uma jovem ainda no desabrochar de sua feminilidade. Olhei rapidamente para a pintura e, ato contínuo, fechei os olhos. A princípio, nem para mim mesmo ficou claro por que fiz isso.

O retrato oval” trata do custo da arte e, de maneira mais geral, da relação entre real e ideal, tangível e intangível. A história da bela jovem cuja saúde entra em declínio ao posar para o marido artista parece ecoar diretamente as circunstâncias do próprio escritor, que, poucos meses antes de publicar o conto, havia tomado conhecimento da tuberculose que acometia sua jovem esposa, Virginia Clemm, e acabaria por matá-la. Virginia não via com bom olhos a inclinação do marido para a poesia, da mesma forma (embora não necessariamente pelo mesmo motivo) que a jovem esposa odiava a musa do pintor.

Havia identificado o encanto da imagem na absoluta vivissimilhança da expressão, que, a princípio surpreendente, acabara por me confundir, conquistar e amedrontar.

Outras abordagens do tema da arte no gênero do terror/horror podem ser encontradas em obras como O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde – que, anos antes da publicação do romance, havia elogiado Poe por sua “expressão rítmica” –, “O mezzotinto”, de M. R. James, “O caso de Charles Dexter Ward”, de Lovecraft, e “Vampiro”, de Jan Neruda.

Leia o conto O retrato oval, de Edgar Allan Poe

Fontes: Wikipedia, The Classic Horror Blog.