Os três cavaleiros do apocalipse | parte III

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O príncipe se levantou como uma grande águia escura, o ondear de seu manto como o ruflar de asas poderosas; e todos souberam que uma cólera que transcendia as palavras o havia transformado num homem de ação. Ignorando von Grock, exigiu, a plenos pulmões, a presença do segundo em comando, general von Voglen, um sujeito troncudo e de cabeça quadrada que se encolhia na retaguarda, imóvel feito uma pedra.

— Quem tem a melhor montaria em sua divisão, general? Quem é o melhor cavaleiro?

— Arnold von Schacht tem um cavalo que poderia disputar o páreo — replicou prontamente o general. — E cavalga tão bem quanto um jóquei. É um dos hussardos brancos.

— Muito bem — disse o príncipe, com o mesmo tom acerado na voz. — Que parta imediatamente atrás do portador dessa ordem absurda e o detenha. Darei a ele autoridade que o distinto marechal não contestará, imagino. Tragam-me papel e tinta.

Sentou-se, afastando o manto; e, no que lhe trouxeram material de escrita, escreveu, com pulso firme e um floreio, a ordem que revogava toda e qualquer ordem em contrário e garantia o indulto e a libertação do polonês Petrowski.

Então, em meio a um silêncio sepulcral, que o velho Grock enfrentou com a expressão de um ídolo de pedra pré-histórico, o príncipe deixou o recinto, manto e sabre arrastando no chão. Estava tão violentamente contrariado que ninguém se atreveu a lembrá-lo da revista formal às tropas. Já Arnold von Schacht – um rapaz vigoroso e de cabelo encaracolado que mais parecia um menino, mas exibia múltiplas medalhas sobre o uniforme branco de hussardo – bateu os calcanhares e recebeu o papel dobrado das mãos do príncipe; em seguida, saiu a passos largos, saltou sobre o cavalo e disparou pelo caminho alto e estreito como uma flecha de prata ou uma estrela cadente.

O velho marechal voltou lenta e calmamente para sua tenda, removeu lenta e calmamente o capacete com ponteira e os óculos e os colocou, como antes, em cima da mesa. Chamou, então, um ordenança que estava postado do lado de fora e mandou que fosse buscar imediatamente o sargento Schwartz dos hussardos brancos.

Um minuto depois, se apresentou ao marechal um homem muito magro e alto, com uma grande cicatriz no queixo, um tanto moreno para um alemão, a não ser que suas cores todas tivessem se alterado depois de anos de fumaça e tormenta e mau tempo. Bateu continência e assumiu posição de sentido, rígido, enquanto o marechal erguia lentamente os olhos para fitá-lo. E vasto quanto fosse o abismo entre o marechal do império, acostumado a comandar generais, e aquele maltratado suboficial, a verdade é que, de todos os homens que falaram nesta história, estes foram os únicos que se olharam e se entenderam sem necessidade de palavras.

— Sargento — disse o marechal, sucinto —, já o vi duas vezes antes. Uma, creio, quando você ganhou o torneio de tiro com carabina do exército.

O sargento, em silêncio, bateu continência.

— E outra — prosseguiu von Grock — durante o interrogatório por ter atirado naquela maldita velha que se recusava a nos dar informações a respeito da emboscada. O incidente deu muito o que falar na época, mesmo nalguns de nossos círculos. Você, no entanto, recebeu apoio de gente influente. Meu apoio.

O sargento, ainda em silêncio, bateu nova continência. O marechal continuou sua exposição monocórdia, mas curiosamente cândida.

— Sua Alteza o príncipe recebeu informações incorretas e enganosas acerca dum ponto essencial para sua própria segurança e a segurança da pátria. Em razão desse equívoco, concedeu, de maneira imprudente, um indulto ao polonês Petrowski, cuja execução ocorrerá ainda esta noite. Repito: cuja execução ocorrerá ainda esta noite. Você deve partir agora mesmo atrás de von Schacht, que está levando o indulto, e detê-lo.

— Não tem como eu alcançá-lo, marechal — afirmou o sargento Schwartz. — Ele tem o cavalo mais ligeiro do regimento e é o melhor cavaleiro.

— Não disse para alcançá-lo; disse para detê-lo — corrigiu Grock. Depois, mais devagar: — Geralmente, um homem responde a diferentes sinais para parar ou se voltar: um grito, um tiro. — E, com voz ainda mais lenta e pesada, mas sem pausa: — O disparo de uma carabina pode atrair sua atenção.

Então o sargento bateu continência pela terceira vez, lábios cerrados.

— Não se transforma o mundo — continuou Grock — com palavras, nem com reprimendas ou aplausos, mas com ações. O mundo não se refaz duma ação. E a ação necessária neste momento é a morte de um homem. — Fuzilou repentinamente o outro com os faiscantes olhos de aço e acrescentou: — Refiro-me a Petrowski, é claro.

O sargento Schwartz esboçou um sorriso sinistro e, também ele, deixando a tenda, ganhou a escuridão, montou seu cavalo e partiu.

O último dos três cavaleiros era ainda menos imaginativo que o primeiro. Porém, como fosse (mesmo que de um modo imperfeito) humano, não podia ignorar, em semelhante noite e semelhante missão, o peso daquela paisagem inumana. Enquanto cavalgava pela brusca cimeira, espraiava-se infinitamente ao seu redor algo dezenas de milhares de vezes mais inumano que o mar. Porque naquilo não se podia nadar, nem velejar, nem fazer nada de humano; naquilo só se podia afundar, e praticamente sem chance de luta. O sargento sentiu vagamente a presença de algum lodo primordial que não era sólido nem líquido nem sujeito a forma; e sentiu sua presença por trás de todas as formas existentes.

Ele era ateu, como tantos milhares de homens esclarecidos e obtusos no norte da Alemanha; mas não daqueles pagãos afortunados que enxergam no progresso humano um florescer natural da Terra. Aquele mundo diante dele não era um campo no qual coisas verdes ou vivas evoluíam, se desenvolviam e frutificavam; era apenas um abismo no qual todas as coisas vivas afundariam pela eternidade como num poço sem fundo; e tal pensamento lhe dava forças para encarar todos os absurdos a que se via obrigado num mundo tão odioso. Os borrões verde-cinza da vegetação rasteira, vistos de cima, mais pareciam um mapa epidemiológico que um gráfico de desenvolvimento; e o líquido empoçado bem poderia ser veneno em vez de água. Lembrava-se de um ou outro alvoroço humanitário por causa de poços envenenados.

Mas as reflexões do sargento, como a maioria das reflexões de gente não habituada a refletir, tinham raízes nalguma tensão subconsciente em seus nervos e em sua inteligência prática. A verdade é que, além de lúgubre, a reta diante dele parecia interminável. Impossível crer que, depois de tanto cavalgar, não tivesse ainda o menor vislumbre do homem que perseguia. Von Schacht partira havia relativamente pouco tempo; seu cavalo teria de ser realmente o mais ligeiro entre os ligeiros para que tivesse tamanha dianteira. Como afirmara Schwartz, era improvável que o alcançasse; mas uma estimativa bastante realista das distâncias envolvidas lhe dizia que já deveria tê-lo avistado. Então, justo quando o desespero começava a se abater e se deitar sobre a paisagem desolada, o sargento viu o que procurava.

Apareceu à distância como um ponto branco que, pouco a pouco, dificultosamente, tomou a forma de uma figura branca em furiosa carreira – e mesmo assim porque Schwartz logrou uma arrancada também em furiosa carreira; mas foi o bastante para divisar a tênue e oblíqua faixa laranja sobre o uniforme branco que marcava o regimento dos hussardos. O vencedor do torneio de tiro do exército acertara o branco de alvos menores do que aquele.

Apontou a carabina e um estampido desnatural fez com que alçassem voo as aves selvagens num raio de quilômetros. Mas o sargento Schwartz não lhes prestou atenção. O importante para ele era que, mesmo àquela distância, conseguia ver a aprumada figura branca se inclinar e se dobrar, como que subitamente deformada. O cavaleiro curvou sobre a cela como uma corcunda; e Schwartz, com seu olho preciso e sua longa experiência, teve a certeza de que atingira a vítima; e a quase certeza de que a atingira no coração. Então, com um segundo disparo, abateu o cavalo; e o conjunto equestre adernou, despencou, deslizou e, num lampejo branco, foi tragado pelo escuro pântano abaixo.

O sargento cabeça-dura estava seguro de ter cumprido sua tarefa. Tipos como ele, cabeças-duras, costumam se aplicar muito em seus atos; e é por isso que seus atos são tão frequentemente equivocados. Havia ultrajado o espírito de camaradagem que caracteriza as forças armadas; matado um valente oficial no cumprimento do dever; enganado e desafiado seu soberano e cometido um assassinato vulgar sem a desculpa de desavença pessoal; mas havia acatado as ordens de seu oficial superior e ajudado a matar um polonês. Estas duas circunstâncias finais ocupavam por ora sua mente; e, pensativo, cavalgou de volta para apresentar seu relatório ao marechal von Grock. Não tinha a menor dúvida de que havia cumprido a tarefa a contento. O homem que transportava o indulto estava indiscutivelmente morto; e mesmo que, por algum milagre, estivesse apenas ferido, era inconcebível que, com seu cavalo morto ou moribundo, conseguisse chegar à cidade a tempo de impedir a execução. Não; era decerto muito mais prático e prudente voltar para baixo das asas de seu protetor, o autor daquele projeto desesperado. Apoiava-se, com todas as suas forças, na força do grande marechal.

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