La Mesnie Hellequin, o cortejo fantasma do arlequim

“O ancestral do arlequim da commedia del’arte”, escreve Emily K. Yoder, “era conhecido na Europa medieval por diferentes nomes e aparece no ‘Inferno’ de Dante como o travesso demônio Alichino. […] Alichino era o lendário chefe demoníaco de um infernal tropel notívago; como Hellequin, liderava a temível Cavalgada Fantasma da superstição escandinava, conhecida na França medieval como Mesnie Hellequin, uma tropa de espíritos malignos ou almas dos mortos que cavalga pelo céu noturno em companhia de cães espectrais, assombrando lugares ermos e aterrorizando as pessoas.”

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No século XII, o cronista britânico e monge beneditino Oderic Vitalis registra a história de um padre que, voltando de visita a um doente de sua paróquia na noite de Ano Novo, escuta o barulho de um “exército imenso”. Escondido, observa a passagem de uma longa procissão de mortos a cavalo, demônios e pecadores pagando suas penas. O padre reconhece a turba como a familia Herlechini, sobre a qual ouvira falar, mas até então desacreditara. Ronald Hutton credita histórias do tipo, comuns em toda a Europa, à “crescente especulação quanto ao destino dos mortos” em um período que viu o nascimento do conceito de purgatório como lugar físico. A tropa de Herlechin seria uma espécie de “purgatório itinerante”.

Sugestões quanto à origem do nome “He(r)llequin” apontam para uma possível inspiração na deusa nórdica Hel

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… ou no mítico rei britânico Herla, cuja história é contada por Walter Map (c.1140-c.1209) em seu De Nugis Curialum. Herla, acompanhado de grande comitiva, teria viajado ao mundo inferior (ou alguma espécie de reino subterrâneo) para o casamento de um rei anão – ou fauno, já que é descrito como peludo e dotado de cascos de bode. Passados três dias, prepara-se para voltar a seu próprio reino; recebe do anfitrião, entre outros presentes, um pequeno sabujo ao qual é atrelado um alerta: nem Herla nem demais membros de sua companhia devem apear antes que o cãozinho, por vontade própria, toque o chão.

De volta à superfície, o rei se dirige a um velho pastor e pede notícias de sua rainha, mas o homem mal consegue entendê-lo: duzentos anos se passaram desde as invasões saxônicas e o bretão caiu em desuso. O pastor desconhece a tal rainha, cujo nome só ouvira em histórias a respeito do velho rei Herla, desaparecido havia muito tempo. Confusos e chocados, alguns cavaleiros, esquecendo o aviso do rei anão, apeiam; pisando no chão, imediatamente viram pó. (São evidentes as semelhanças com a narrativa da viagem de Oisín a Tír na n-Óg.) Herla ordena que os demais permaneçam montados até que o sabujo salte de seus braços para o chão – mas isso nunca acontece. O rei e sua comitiva, chamados de Herlethingi, veem-se, então, condenados a vagar pelas Ilhas Britânicas sem paz nem descanso. Segundo Map, teriam sido vistos pela última vez nas proximidades de Gales e Hereford no primeiro ano do reinado de Henrique II, quando, acossados por um grande grupo armado, cavalgaram para dentro do rio Wye e desapareceram.

Importa dizer que, na qualidade de líder da “marcha dos condenados”, Herla é identificado muitas vezes com Odin (Woden), que, na tradição germânica, é geralmente apontado como chefe da Cavalgada Fantasma. Mas é válido também lembrar que o termo “Wild Hunt” – geralmente traduzido como Caçada Selvagem, que não é de minha preferência – é uma criação moderna (século XIX) usada para agrupar histórias que não se referem necessariamente aos mesmos temas, ainda que tenham elementos em comum.

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De volta a Yoder: “O arlequim tem outras ressonâncias sinistras como espírito ctônico do submundo, ‘ligado aos deuses do destino’, símbolo das forças de tânatos ou do desejo de morte. Edwin S. Shneidman, discutindo a conexão do arlequim com a morte, diz: ‘De fato, ser amada/o pelo arlequim era estar casada/o com a morte’”.

Fontes / para ler mais:

Dorgival Soares. Arlequim. Balaio Caótico.

Emily K. Yoder. The demon harlequin in Conrad’s hell. Conradiana, v. 12, nº 2, p. 88-92, 1980.

Graeme Cooke. King Herla & the Wild Hunt. Tales of Britain and Ireland.

Mark Truesdale. King Herla and the Wild Hunt in Twelfth-Century England and Wales. Folklore Thursday.

Robert Hutton. The Wild Hunt and the Witches’ Sabbath. Folklore, v. 125, nº 2, p. 161-178, 2014.

Willian Hand Browne. “Harlequin” and “Hurly-Burly”. The Sewanee Review, v. 18, nº 1, p. 23-31, 1910.

Imagens: Arlequin, Paul Cézanne; Hel, Johannes Gehrts; Åsgårdsreien, Peter Nicolai Arbo, coleção da Nasjonalgalleriet, Oslo; todas em domínio público, via Wikimedia Commons.

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