A entrada do inferno

Originalmente publicado em Hermitary em 27 de maio de 2022

Reigen Eto (1721-1785) era aluno do renomado mestre zen Hakuin. Em dado momento, Reigen deixou o templo de Hakuin para buscar a solidão das montanhas. Durante dez anos, viveu como eremita, dedicando-se aos ensinamentos e à práxis de seu mestre. Um dia, soube que Hakuin estava ensinando num retiro próximo. Reigen Eto deixou as montanhas para assistir à palestra e ficou de tal modo inspirado que retomou seus estudos com Hakuin. No devido tempo, Hakuin declarou a iluminação de Reigen. Este assumiu um templo em Kyoto e lá introduziu os ensinamentos de Hakuin, que se tornaram muito populares.

Hakuin era pintor e Reigen Eto seguiu o mesmo caminho. A pintura era uma arte precisa, adequada para a singeleza da expressão zen. Reigen buscou temas usuais, pintando Bodidarma, Hotei, o monte Fuji e elementos da natureza como corvos e pinheiros. Uma obra menos conhecida e seu objeto, porém, podem ser seu trabalho mais persuasivo.

In 1543, o Ocidente invadiu o Japão. Uma belonave portuguesa atracou na ilha de Tanegashima e desembarcaram dois marujos portando armas de fogo. A ilha se tornaria o principal centro de comércio português no Japão – entendendo-se por “comércio” a extorsão, a violência e o uso da força contra os habitantes indefesos. Os japoneses lembravam do objeto metálico que era a fonte do poder dos intrusos: a arma de fogo. Desprovidos de conhecimento sobre e experiência com tal artefato, o nome da ilha – a palavra “tanegashima” – tornou-se sinônimo de “arma de fogo”. E este é o tema da pintura de Reigen Eto chamada “A arma de fogo”, obra curiosamente obscura em meio a seu próprio corpus e a pinturas zen históricas.

A obra – não reproduzida na internet quando da postagem deste texto – foi pintada de modo estilizado, com um haicai em cima e um objeto (a arma, neste caso) na parte de baixo. A arma foi pintada em rápidas pinceladas, evocando os traços apagados de tinta preta chamados de “branco voador” pelos calígrafos. Lê-se no haicai: “O estampido / da arma é a entrada / do inferno”.

O falecido John Daido Loori, coeditor de The Zen Art Book, faz o seguinte comentário sobre a pintura de Reigen Eto: “Aqui estamos, mais de dois séculos e meio depois, e a única diferença é que nossos instrumentos de destruição se tornaram mais sofisticados e eficientes, ao passo que nossa maneira de conceber o universo e nossa própria existência permaneceu virtualmente estática”.

Originalmente publicado em Hermitary em 27 de maio de 2022

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