Oisín na Terra da Juventude

Certa manhã, em meio à neblina às margens de loch Lena, quando caçavam em companhia de seus homens, Finn1 e Oisín avistaram uma donzela de extraordinária beleza cavalgando um corcel branco como a neve. Como rainha ela se vestia; uma coroa dourada lhe encimava a cabeça e um manto de seda marrom-escuro salpicado de estrelas de ouro vermelho lhe caía dos ombros, arrastando no chão.2 Do cavalo, prata enfeitava os cascos e ouro penachava a cabeça. Aproximando-se, ela disse:

— Venho de muito longe a tua procura, Finn, filho de Cumhal.

— Declara tua origem e linhagem, donzela, e o que desejas de mim — disse Finn.

— Meu nome — disse ela — é Niamh do Cabelo Dourado. Sou filha do rei da Terra da Juventude, e o que me traz aqui é o amor de teu filho Oisín. — Em seguida, voltou-se para Oisín e lhe falou nos termos de quem jamais pediu nada a ninguém: — Virás comigo, Oisín, à terra de meu pai?

E Oisín disse: — Irei, e até o fim do mundo, se preciso. — Pois o encanto da fada sequestrara de tal modo seu coração que nada neste mundo lhe importava senão o amor de Niamh do Cabelo Dourado.

Então a donzela lhes falou da Terra Além-mar à qual conduziria seu amado e uma quietude onírica desceu sobre tudo: cavalo não sacudiu brida, nenhum cão latiu, nem o mais leve sopro de ar agitou as árvores da floresta, nada ousou interrompê-la. E embora não conseguissem depois recordar com exatidão suas palavras, pareceram a eles, naquele momento, as mais doces e adoráveis que já tinham ouvido; e o pouco que conseguiram memorizar era mais ou menos assim:

Encantadora é a terra que excede todos os sonhos,
Maior formosura não se há de encontrar.
A árvore, lá, frutifica o ano todo,
E a natureza está sempre em flor.

O mel silvestre goteja dos galhos;
Vinho e hidromel jamais hão de faltar.
Nem dor nem doença conhecem seus habitantes,
Morte e declínio nunca os descobrirá.

Não se esgotará o banquete, nem a caça cessará,
E estarão sempre repletos de música os salões;
Do ouro e das joias da Terra da Juventude, o resplendor
Não conhece igual em nada que o homem pode sonhar.

Possuirás cavalos de élfica estirpe,
E cães mais velozes que o vento;
Cem comandantes te seguirão na guerra,
Teu repouso, cem donzelas acalentarão.

Tua será a coroa da soberania,
E a teu lado uma lâmina mágica repousará.
Serás senhor de toda a Terra da Juventude,
E o amor de Niamh do Cabelo Dourado.

Terminada a canção mágica, Oisín montou o corcel feérico e tomou em seus braços a donzela, que, sem aguardar dos presentes gesto ou palavra, fez girar o cavalo; um toque na rédea e dispararam pela clareira, varrendo a distância como um raio de luz projetado entre nuvens; e foi a última vez que os Fianna viram Oisín, filho de Finn, sobre a face da Terra.

Seu destino, porém, não é desconhecido. Tão estranho quanto seu nascimento3 foi seu fim, pois testemunhou os prodígios da Terra da Juventude e viveu para contar.

Chegando ao mar, cavalgaram ligeiros por sobre as ondas e logo sumiram de vista as matas verdejantes e os promontórios de Erinn. E agora o sol os banhava inclemente, e navegavam uma bruma dourada na qual Oisín perdeu toda a noção de onde estava, se oceano ou terra firme. Mas estranhas paisagens se deixavam entrever vez e outra na bruma, torres e portais palacianos assomavam e se perdiam, e certa feita passou por eles uma corça sem chifres perseguida por um cachorro branco de orelha vermelha; noutra, deram com uma jovem donzela num cavalo marrom carregando uma maçã dourada e, logo atrás, num corcel branco, um jovem cavaleiro de espada em punho e esvoaçante manto púrpura. Oisín teria perguntado à princesa quem e o que eram tais aparições, mas Niamh lhe proibira as perguntas e tampouco pareceu se aperceber dos fantasmas que encontraram no caminho até a Terra da Juventude.

Quando o céu escureceu, Niamh açodou sua montaria. O vento e a chuva os açoitavam, o trovão rugia sobre o oceano e o relâmpago espocava, mas mantiveram o curso e, em pouco tempo, alcançaram novamente uma região de calmaria e céu aberto. E ora Oisín avistava uma praia de areia amarela banhada pelas ondas de um oceano estival. Mais além, em meio a colinas arborizadas, divisava os telhados e as torres de uma nobre cidade. O cavalo os trouxe rapidamente até a praia e eles apearam. E Oisín ficou maravilhado com tudo o que via, pois nunca fora a água tão cristalina ou as árvores tão imponentes, e a floresta fervilhava com o zumbido de abelhas e o canto dos pássaros, e as criaturas que em outras terras são selvagens – o cervo, o esquilo vermelho e o pombo-bravo – se aproximavam sem temor para serem acariciadas. Prosseguiram e logo avistaram os muros de uma cidade; rapazes e moças vieram saudá-los no caminho, alguns a cavalo, outros a pé, todos tão joviais que pareciam viver ainda o raiar de uma existência afortunada, e não havia sinal de velhice ou debilidade. Niamh conduziu seu acompanhante por um pórtico torreado de mármore branco e vermelho e lá foram recebidos por uma resplandecente companhia de cem cavaleiros montados em corcéis negros e outros cem em corcéis brancos; Oisín recebeu um cavalo negro e Niamh, um branco; em seguida, cavalgaram até o imponente palácio onde residia o rei da Terra da Juventude. Ele os recebeu e proclamou de modo a que todos ouvissem:

— Bem-vindo, Oisín, filho de Finn. Chegaste à Terra da Juventude, onde desventura, cansaço e morte jamais te tocarão. Este é teu prêmio por tua lealdade e valor e pelas canções que compuseste para a gente de Erinn, e cuja fama chegou até nós, pois temos aqui tudo que é encantador e prazeroso, lirismo apenas nos falta. Mas agora temos o poeta-mor da raça dos homens para viver em nosso meio, imortal entre imortais, e a vida bela e serena que aqui levamos há de ser exaltada em versos igualmente belos; do mesmo modo que exaltaste e alegraste a curta, árdua e incerta vida dos homens no mundo que agora deixaste para sempre. E Niamh, minha filha, será tua noiva, e em tudo serás meu igual na Terra da Juventude.

O coração de Oisín se encheu de glória e júbilo; voltou-se para Niamh e encontrou, refletido em seus olhos, o mesmo ardor que sentia. Casaram-se de imediato e a felicidade que encontravam um no outro se aprofundava e enriquecia a cada dia. Todas as promessas contidas na canção mágica de Niamh empalideciam ante o esplendor e a beleza da vida na Terra da Juventude. No grande palácio, caminhavam em tapetes de seda e comiam em pratos de ouro; as paredes de mármore e os pórticos eram ornados de entalhes e as tapeçarias mostravam, em cores imperecíveis, clareiras, lagos tranquilos e cervos em fuga. O sol iluminava sempre o palácio e um vento fresco percorria os corredores ensombrecidos, e nos pátios brincavam fontes de água clara entre canteiros de flores. Quando Oisín queria cavalgar, um corcel de temperamento fogoso, porém gentil o transportava para onde desejasse naquela terra aprazível; quando queria ouvir música, chegavam-lhe ao pensamento, como que trazidas pelo próprio ar, notas cristalinas tais que harpa nenhuma jamais produziu na face da Terra.

Mas Oisín já não buscava a harpa, e o desejo de cantar e de fazer poesia nele não despertava, pois em meio a toda a perfeição que florescia e cintilava a sua volta, nada lhe parecia tão melhor do que o resto a ponto de ser destacado e louvado.

Passados sete dias, disse ele a Niamh:

— Gostaria de caçar.

— Que assim seja, meu amor — respondeu Niamh —; trataremos disso amanhã.

E Oisín custou a dormir, pensando no som da trompa de Finn e no cheiro da madeira verde com que acendiam os fornos para assar a carne.

No dia seguinte, Oisín e Niamh saíram a cavalo, acompanhados de cavaleiros e damas e cães saltando e latindo, ansiosos pela caçada. Logo entraram na floresta e os caçadores com os galgos, num círculo amplo, varreram o bosque de um lado e de outro, até que o alto clamor dos cães denunciou a proximidade da caça. Oisín os viu descer uma clareira em perseguição a um veado de grandes chifres que corria como o vento; e fazendo ouvir o grito de caça feniano, partiu também, furiosamente, em seu encalço. Passaram o dia perseguindo o veado na floresta cheia de ecos, e o cavalo feérico não vacilou um instante em conduzi-lo por terreno acidentado ou plano, até que, ao cair da noite, a presa foi abatida e Oisín cortou-lhe a garganta com sua faca de caça. Parecia-lhe um longo tempo desde que se sentira contente e cansado como agora, e desde que o ar da mata, com seus odores de pinho, hortelã e alho selvagem, deixara em sua boca gosto tão doce; e esse tempo era, na verdade, maior do que imaginava. Mas quando ordenou que preparassem o forno a lenha para a refeição e dos galhos fizessem uma choça para descansarem, Niamh o conduziu sete passos adiante e sete para a esquerda, e ainda sete de volta ao local onde haviam matado o cervo, e eis que deram com um imponente dún4 com janelas iluminadas e fumaça saindo pelo telhado. Ao entrar, encontraram a mesa posta para uma grande comitiva e um amplo braseiro no qual eram preparados assados e cozidos de todo tipo. Barris de vinho grego encostados nas paredes abasteciam as taças de ouro dos convivas. Todos comeram e beberam à conveniência e Oisín e Niamh passaram a noite numa cama mais macia do que plúmulas de cisne, num aposento que nada devia àquele que compartilhavam na Cidade da Terra da Juventude.

No dia seguinte, à primeira luz, estavam de pé; e não tardou para que a floresta se enchesse dos latidos dos galgos e da música da trompa. Oisín cavalgou o dia todo, e seu corcel se mostrou tão infatigável e ligeiro quanto antes; e novamente a presa foi abatida às portas da noite, e novamente um palácio se ergueu no ermo para os festejos noturnos, tudo nele ainda mais abundante e suntuoso do que na noite anterior. E assim foi durante os sete dias em que permaneceram na floresta, quando sete veados foram abatidos. Então Oisín enfastiou-se da caçada e, ao manejar pela última vez a afiada lâmina de caça, pensou na espada de mágica têmpera que, ociosa, pendia da escápula dourada em seu quarto na Cidade da Juventude. Disse ele a Niamh:

— Teu pai nunca tem um inimigo a subjugar, um mal a corrigir? Não haverá, certamente, de olvidar o arado a mão do camponês; tampouco o punho da espada a mão do guerreiro.

Por um momento, Niamh o encarou com estranheza, como se não entendesse suas palavras ou buscasse nelas um significado que temesse encontrar. Por fim, respondeu:

— Se feitos heroicos são o que desejas, Oisín, logo encontrarás oportunidades em profusão.

Voltaram para casa e passaram aquela noite no palácio da Cidade da Juventude.

Ao alvorecer, Niamh despertou Oisín e afivelou-lhe a espada de empunhadura dourada e o corselete de aço azul incrustado de ouro. Em seguida, pôs em sua cabeça um elmo de aço e ouro com crista de dragão e pendurou em suas costas um escudo de bronze cinzelado de linhas serpentinas em relevo que espiralavam em nós labirínticos ou se curvavam como as ondas do mar quando reúnem força e volume para se arrojar contra as rochas. À luz da aurora, cavalgaram sozinhos pelas ruas vazias da bela cidade e chegaram a campos de milho e pomares onde maçãs vermelhas pendiam ao alcance das mãos. Por volta do meio-dia, porém, a estrada, que conduzia para o oeste, começou a subir ao encontro de colinas azuladas onde não havia sinal de ocupação humana; apenas altos pinheiros de tronco avermelhado margeavam o caminho de ambos os lados; onipresentes eram o silêncio e a solidão. Chegaram, por fim, a uma chapada no coração das montanhas onde nada crescia senão um capim longo e áspero que se debruçava sobre poças de água escura e parada e pela qual se espalhavam grandes rochas embranquecidas ou manchadas de um vermelho vivo. Erguida contra o céu, a cordilheira aparecia agora como uma ameaça de dentes à mostra; e Oisín, cavalgando em sua direção, percebeu, próximo a um desfiladeiro, uma enorme fortaleza de rocha. Com exceção do musgo escuro que se agarrava às cornijas e ameias, tudo nela era branco como a morte, e nada parecia se mover, e nenhum estandarte tremulava em suas torres.

Então Niamh disse:

— Este, Oisín, é o dún do gigante Fovor do Punho Forte. Ele mantém prisioneira uma princesa do povo das fadas a quem deseja tomar como esposa; contudo, não pode fazê-lo, nem pode ela escapar, até que Fovor tenha se provado em combate contra um campeão que a represente. Chega-te, pois, ao portão, se estiveres disposto a tal ventura, e toca a trombeta nele pendurada; e depois cuida de tuas armas, porque não tardará o combate.

Oisín cavalgou até o portão e tocou três vezes a grande trombeta, e seu clangor lúgubre ecoou nos penhascos que circundavam o vale. Nem mesmo o dord5 de Finn, que, no calor da batalha, inspirava nos Fianna o tesão pelo combate e o desprezo pela morte, soava daquele jeito. Os portões enferrujados se abriram no terceiro toque, gemendo nas dobradiças, e Oisín adentrou um amplo pátio onde serviçais de aparência maligna, depois de recolher seu cavalo e o de Niamh, os conduziram ao salão de Fovor. Era um espaço escuro e de teto baixo, com arrás embolorado nas paredes e piso de madeira sujo e carcomido, onde cães roíam os ossos da última refeição e respingos de cerveja e restos de carne emporcalhavam a mesa nua de carvalho. Levantou-se para saudá-los uma lânguida donzela sete vezes agrilhoada a quem Niamh se dirigiu com carinho, dizendo que havia chegado seu campeão e que seu longo aprisionamento estava próximo do fim. A donzela lançou um olhar a Oisín, cuja altivez e rica armadura fazia o lugar vil parecer ainda pior, e em seu rosto pareceu se acender uma luz de esperança e contentamento. Em seguida, serviu-lhes o melhor que pôde antes que voltassem ao pátio, onde o local da batalha estava pronto.

Aqui, no canto mais distante, aguardava um sujeito enorme e de armadura enferrujada que, ao ver Oisín, investiu, silencioso e brutal, empunhando um grande machado. Mas dúvida e lassidão se abateram sobre Oisín, e pareceu-lhe por um momento que tudo não passava de um sonho ruim que seria menos do que nada quando acordasse. Mesmo assim, ergueu o escudo e empunhou a espada feérica, esforçando-se por soltar o grito de guerra feniano ao se aproximar de Fovor. Mas logo um pesado golpe o atirou no chão e sua armadura se chocou com violência contra as pedras. Então uma nuvem pareceu abandonar seu espírito, e ele, mais rápido que uma flecha, pôs-se de pé e, com uma estocada feroz, abriu um talho no lado de baixo do braço de Fovor quando este se preparava para atacar; e Oisín viu o sangue de seu inimigo. A luta esquentou e os combatentes iam e voltavam pelo amplo pátio; ressoavam os passos e o aço se chocando e as armaduras retinindo e os gritos de ataque quando os heróis cerravam-se; Oisín, ágil como um cervo, evitando o giro do poderoso machado e investindo, a cada abertura, com a lâmina fulgurante, toda a alma dedicada a um único pensamento: penetrar com a ponta da espada uma das brechas no ombro ou no pescoço da cota de Fovor. Por fim, quando ambos estavam já cansados e feridos, com armaduras fendidas e malhadas, a lâmina de Oisín cortou a tira que segurava o elmo de Fovor, fazendo-o cair no chão com grande estardalhaço. Outro golpe deixou prostrado o gigante, e Oisín, zonzo e ofegante, apoiou-se na espada; Niamh veio em seu auxílio, enquanto Fovor era retirado de maca por seus servos. Depois, no grande salão, Oisín despiu a armadura e Niamh tratou de seus machucados, curando-os com ervas mágicas e encantamentos sussurrados, e perceberam que uma das sete correntes enferrujadas que aprisionavam a princesa havia se soltado da argola de ferro na parede.

Oisín dormiu um sono profundo e reparador e levantou no dia seguinte, forte e são, ansioso por retomar o prélio. E o gigante, da mesma forma, estava curado, recuperada sua força e ferocidade. Lutaram até estarem exaustos e sem fôlego, e outra vez, e outra, até que, por fim, Oisín cravou-lhe a espada até o punho na junção do ombro com a clavícula; o gigante caiu desacordado e, como antes, teve de ser carregado. E um grilhão a menos aprisionava a donzela.

O combate prosseguiu durante sete dias, e Oisín teve sete noites de descanso e cura, com a ternura e beleza de Niamh a velar seu sono; e, no sétimo dia, a donzela foi libertada; e uma grande festa fizeram os seus ao vir buscá-la, com estandartes e música, emprestando um brilho momentâneo àquele lugar esquecido e maligno.

Mas o coração de Oisín se elevava de orgulho e vitória, e irrompeu em seu peito a saudade daqueles dias em que, vitoriosos, os Fianna eram recebidos e saudados pelos vizinhos no dún de Allen; e homens e mulheres abandonavam a labuta ou a diversão para rodear os heróis e se inteirar de seus feitos; e os bardos anotavam tudo a fim de compor histórias gloriosas para os dias vindouros; e, mais do que tudo, sentiu saudade do sorriso e do olhar de Finn ao saber como os filhos se haviam comportado diante da morte. Então Oisín disse a Niamh:

— Permita-me, por um curto período, voltar à terra de Erinn para ver meus amigos e parentes e contar a eles a glória e o júbilo que conheci na Terra da Juventude.

Mas Niamh, chorosa, abraçou-se a ele e suplicou que não mais pensasse no triste mundo onde os homens vivem e caminham sob o dossel da morte, e onde o verão se rende ao inverno, e a mocidade à velhice, e onde o próprio amor, quando não morre de falsidade e injúria, tantas vezes perece de júbilo excessivo. Mas Oisín disse:

— O mundo dos homens, comparado ao teu mundo, é como este lúgubre deserto comparado à cidade de teu pai; contudo, Niamh, naquela cidade, ninguém é melhor nem pior do que ninguém, e anseio por contar minha história a gente ignorante e frágil que se pode comover com minhas palavras, que tantas vezes fizeram rir e chorar. Voltarei, depois, a teu lado, Niamh, e a esta terra bela e cheia de graças; e depois de levar aos mortais uma história tal que ninguém jamais contou igual, hei de me sentir feliz e em paz na Terra da Juventude.

Regressaram, então, à cidade dourada e, no dia seguinte, Niamh entregou a Oisín o corcel que os transportara desde Erinn e dele se despediu.

— Este nosso corcel — disse ela — há de levá-lo através do oceano para a terra onde o encontrei, e aonde mais quiseres ir, e poderás contar tua história a quem quer que lá encontres. Porém, não deves nunca, nem por um instante, apear de tua montaria, pois se teus pés voltarem a tocar o solo mortal, jamais retornarás a mim ou à Terra da Juventude. E temo o acaso maligno que possa tirá-lo de mim. Será que o amor de Niamh do Cabelo Dourado não basta para satisfazer um coração mortal? Mas se tens de ir, então vá, e que te acompanhem bênçãos e vitórias.

Então Oisín segurou Niamh junto ao peito e a beijou, e prometeu não se demorar e jamais apear do corcel feérico. Depois, sacudiu as rédeas douradas e o cavalo ergueu a cabeça, bufou e partiu com a velocidade e a leveza da água corrente. Logo chegaram à costa, mas o corcel branco não se deteve, roçando com as pontas dos cascos as cristas das ondas. O sol chamejava sobre o oceano e o calor, aliado ao movimento, dava a Oisín a sensação de vertigem, e em bruma e sonho ele cavalgou onde não havia dia nem noite, tampouco noção de tempo, até que, finalmente, os cascos do cavalo revolveram a areia úmida e amarela e ele viu rochas escuras emoldurando uma enseada. Mais adiante, em meio a campos verdes ou castanhos e choupanas brancas cobertas de juncos, homens e mulheres de aparência cansada e vestidos em tons terrosos corriam para cumprir suas muitas tarefas ou paravam para observar o manto carmim do cavaleiro e os arreios dourados de sua montaria. Porém, em meio às cabanas, havia um pequeno edifício de alvenaria tal que Oisín jamais vira na terra de Erinn; de pedra eram tanto as paredes, muito íngremes e altas, quanto o teto, e ao lado do prédio, numa rude armação de madeira, pendia um sino de bronze. A esta casa se dirigia um homem que, pela cabeça raspada, Oisín supôs um druida, e atrás dele dois rapazes em vestes brancas. O druida, após observar o cavaleiro, voltou novamente os olhos para o chão e seguiu adiante, ignorando-o, e o mesmo fizeram os jovens. E Oisín prosseguiu, ansioso por chegar ao dún na colina de Allen e encontrar seus parentes e amigos.

Emergindo finalmente da floresta na grande clareira onde habitualmente se erguia a ampla e verdejante colina de Allen, com sua cidadela murada cercada por edifícios de paredes brancas, encontrou apenas mato e arbustos crescendo desordenados e um modesto rebanho pastando.

Nisso, foi tomado de um estranho temor e pensou se não estaria sob algum encantamento da terra das fadas que lhe obstasse os olhos, zombando dele com falsas visões. Abriu os braços e gritou os nomes de Finn e Oscar,6 mas ninguém respondeu; imaginou que talvez os cães pudessem ouvi-lo, então gritou por Bran e Sceolaun7 e apurou os ouvidos a qualquer sinal, por menor que fosse, do mundo cuja visão estava embargada a seus olhos; mas tudo que ouviu foi o sussurro do vento entre os arbustos. Aterrorizado, partiu dali e apontou para o mar do leste, pois pretendia atravessar a Irlanda de um lado a outro e de ponta a ponta na tentativa de escapar daquele feitiço. Próximo ao mar do leste, porém, no lugar conhecido como vale dos Tordos,8 viu numa encosta um grupo de homens, coordenado por um capataz, que pelejava para rolar um pedregulho de seu roçado. Cavalgou em sua direção a fim de lhes perguntar a respeito de Finn e dos Fianna. No que se aproximou, interromperam o trabalho para observá-lo, que mais parecia um mensageiro do povo das fadas ou um anjo do Paraíso. Era mais alto e forte do que os homens que conheciam, com olhos azuis e faces coradas; os dentes eram como pérolas e luminoso o cabelo que escapava por baixo do elmo. E ao contemplar os corpos franzinos, castigados de labuta e pesar, e o pedregulho que inutilmente tentavam deslocar, Oisín se encheu de pena e pensou: “tais não eram nem os mais miseráveis de Erinn quando parti para a Terra da Juventude”, e se inclinou na cela para ajudá-los.9 Pousou a mão na rocha e, com um forte empurrão, arrancou-a e a pôs a rolar morro abaixo. Os homens ergueram a voz num brado de admiração e aplauso que, ato contínuo, se transformou em gritos de terror e consternação; e fugiram, tropeçando e atropelando uns aos outros para escapar daquele lugar medonho; pois haviam testemunhado um horrível prodígio. A tira de couro que prendia a sela de Oisín se partiu quando ele empurrou a rocha, jogando-o no chão. O cavalo desapareceu no mesmo instante numa espiral de fumaça; e, em vez de um jovem guerreiro, quem do chão se ergueu, fraco e cambaleante, foi um homem de idade extremamente avançada, mirrado e de barba branca, que estendeu mãos hesitantes e gemeu em soluços fracos e doloridos. O manto carmim e a túnica de seda amarela que vestia eram agora andrajos grosseiros cintados por uma corda; e a espada de punho dourado era um rude cajado de madeira, do tipo usado por vagabundos mendicantes em suas andanças de porta em porta.

Ao perceber que o mal não os afetara, eles voltaram; encontraram o velho prostrado, o rosto afundado nos braços. Ajudaram-no a levantar e perguntaram quem era e o que lhe havia acontecido. Oisín os examinou com olhos baços e disse, enfim:

— Fui Oisín, filho de Finn, e rogo para que me digam onde posso encontrá-lo, pois de seu dún na colina de Allen só resta desolação, e mesmo cavalgando do oeste ao leste, não o vi nem ouvi sua trompa.

Desconfiados, os homens olharam uns para os outros e para Oisín, e o capataz perguntou:

— A que Finn te referes, pois há muitos com esse nome em Erinn?

Oisín disse:

— A Finn mac Cumhal mac Trenmor, capitão dos Fianna de Erinn.

Então o capataz disse:

— És um tolo, velho, e de tolos nos fizeste ao tomá-lo por jovem há pouco. Mas já recobramos o juízo, e bem sabemos que Finn, filho de Cumhal, e toda sua geração está morta há trezentos anos. Na batalha de Gowra caiu Oscar, filho de Oisín, e Finn na batalha de Brea, dizem os historiadores; e as baladas de Oisín, de cuja morte nada se sabe, são entoadas nos grandes banquetes. Mas agora o Talkenn,10 Patrício, veio à Irlanda pregar o evangelho do Deus Verdadeiro e de Cristo Seu Filho; e esses velhos tempos e costumes, por Sua Graça, não existem mais; nem Finn e seus Fianna, com seus festins e caçadas e canções de guerra e de amor, encontram entre nós a mesma reverência que os monges e as virgens do santo Patrício, e os salmos e orações diárias que nos livram do pecado e nos salvam do fogo eterno.

Mas Oisín replicou, ouvindo metade e compreendendo ainda menos do que lhe diziam:

— Se esse Deus de que falas matou Finn e Oscar, então é realmente um homem poderoso.

Nisso, todos se indignaram, e alguns se armaram de pedras, mas o capataz mandou que o deixassem em paz até que tivesse falado com o Talkenn e até que conhecessem suas ordens.

Levaram-no, então, a Patrício, que o recebeu com gentileza e hospitalidade, e a ele Oisín contou sua história. E Patrício exortou seus escribas a tudo registrar cuidadosamente, para que jamais se perdesse a memória dos heróis de Erinn e de sua vida alegre e despreocupada naquelas matas, vales e ermos. E Oisín, durante o pouco que ainda viveu, contou a Patrício muitas coisas dos Fianna e de seus feitos; mas dos trezentos anos passados com Niamh na Terra da Juventude ele raramente falava, vez que mais lhe pareciam uma miragem ou um sonho perdido entre um dia de sol e um dia chuvoso.


1 Finn mac Cumhal (ainda mac Cool ou mac Cumhaill) é um dos mais famosos heróis irlandeses e o mais celebrado chefe dos Fianna (ou fenianos), uma elite de caçadores e soldados que se estabeleceu durante o reinado de Cormac mac Airt (século III d.C.). Pode ter sido originalmente um aspecto do deus Lugh. É geralmente retratado como um gigante, assim como todos os de sua linhagem. [Voltar]

2 Em algumas versões, Niamh aparece diante de Oisín com corpo de mulher e cabeça de porco, enfeitiçada por um druida. Para quebrar a maldição, era necessário que Oisín aceitasse desposá-la. [Voltar]

3 A mãe de Oisín, chamada Saba ou Sadhbh, era prisioneira de um druida maligno que a havia transformado numa corça. Ao escapar, ela buscou asilo com os Fianna de Erinn. Finn, ao retornar de uma caçada, encontrou a corça, que se deixou capturar; chegando ao forte de Allen, ela voltou à forma humana e Finn a tomou como esposa. Porém, aproveitando a ausência dos Fianna, que haviam sido chamados a Dublim, o druida voltou a raptar Saba. Finn não mais conseguiu encontrá-la; contudo, tempos depois, descobriu na mata um menino nu que, desconhecendo pai e mãe, havia sido criado por uma corça. O menino era, claro, Oisín, seu filho. De Saba, depois de ser definitivamente levada pelo druida, nunca souberam.  [Voltar]

4 Uma fortificação medieval, mais propriamente um forte localizado em uma colina. [Voltar]

5 Grito ou cântico de guerra. [Voltar]

6 Filho de Oisín; mãe não identificada. Consta que Oisín teve também dois filhos com Niamh: um chamado Finn e outro chamado... Oscar. [Voltar]

7 Os cães eram, na verdade, parentes de Oisín: a mão deles, Tyren, era irmã de Murna, mãe de Finn (ou, em algumas versões, irmã do próprio Finn), que havia sido transformada em cadela por uma fada que desejava seu marido, Ullan. Pelo menos não foi um druida dessa vez. [Voltar]

8 Glanismole, próximo a Dublim. [Voltar]

9 Em algumas versões da história, Oisín remove a pedra porque embaixo dela se esconde borabu, a trombeta usada para convocar os Fianna. Noutras, não há pedra; a própria trombeta é o “objeto inamovível” que Oisín tem de se inclinar para erguer. [Voltar]

10 Nome dado a são Patrício pelos irlandeses. [Voltar]



Extraído de: T. W. Rolleston (Ed.). The High Deeds of Finn and other Bardic Romances of Ancient Ireland . Il. Stephen Reid. Londres: G. G. Harrap and Co., 1910. p. 154-171. Disponível em: http://www.luminarium.org/mythology/ireland/oisinyouth.htm.

Fontes adicionais (disponíveis no Internet Archive):
Joseph Campbell. The hero with a thousand faces. Novato, Califórnia: New World Library, 2008.
Ronan Coghlan. Dictionary of Irish Myth and Legend. Bangor: Donard Publishing Co., 1979.
T. W. Rolleston. Celtic. Myths and Legends. Londres: Bracken Books, 1986.


Tradução: Rodrigo R. Carmo

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