O terceiro andar, de M. Humphreys

17 de setembro de 1922

Sentei para o café da manhã com bom apetite. O calor aparentemente terminara e um vento fresco soprava do jardim, onde já brotavam os crisântemos. A luz do sol entrava pelas janelas e incidia agradavelmente sobre o rosto largo da sra. O’Brien enquanto ela trazia os ovos e o café. Para um velho solteirão teoricamente solitário, o mundo me parecia um ótimo lugar. Estava passando manteiga na terceira rodada de waffles quando a governanta voltou, dessa vez com a correspondência.

Olhei desinteressadamente as três ou quatro cartas ao lado do prato. Identifiquei numa delas uma caligrafia estranhamente familiar. Depois de um minuto olhando fixamente o envelope, peguei-o, coração aos galopes. Meus olhos quase se encheram de lágrimas. Não havia dúvida – era a caligrafia de Arthur Barker. Trêmula e diferente, com certeza, mas havia dez anos desde a última vez que vira Arthur, ou melhor, dez anos desde seu misterioso desaparecimento.

Todo esse tempo, não tive notícias suas. Tampouco seus familiares sabiam o que havia acontecido com ele, e há muito o considerávamos morto. Desapareceu sem deixar rastro. Parecia-me que, com ele, haviam desaparecido os últimos vestígios de minha juventude. Pois naquele tempo feliz, Arthur fora meu melhor amigo. Éramos inseparáveis e aprontávamos todo tipo de coisa juntos.

E agora, após dez anos de silêncio, uma carta de Arthur!

O envelope tinha carimbo postal de Baltimore. Quase relutante, pois temia seu possível conteúdo, o abri; trazia uma única folha de papel, extraída de um bloco. Mas era a letra de Arthur:

“Caro Tom,
se importaria de passar alguns dias comigo, meu velho? Receio estar numa pior.

Arthur.”

Abaixo, o endereço rabiscado: rua Marathon, nº 536.

Fui a Baltimore várias vezes, mas não lembro de uma rua com esse nome.

Claro que irei… Mas que carta estranha depois de dez anos! Alguma coisa nela é quase irreal.

Partirei amanhã à tardinha. Não tenho como me ausentar antes disso.


18 de setembro

Partirei hoje à noite. A sra. O’Brien fez minhas malas e tudo está preparado para a viagem. Faz dez minutos que lhe entreguei as chaves e ela, choramingando, foi embora. Passou o dia inteiro chorosa em razão de uma coisa muito curiosa que aconteceu pela manhã e que me deixou perplexo.

Foi a carta de Arthur. Ontem, depois de ler, coloquei-a num pequeno compartimento de minha escrivaninha junto com outros papéis particulares. Lembro claramente que estava em cima da pilha, com um cartão de alfazema de minha irmã logo embaixo. Quando fui pegá-la de manhã, havia sumido.

Lá estava o cartão de alfazema, conforme me lembrava, mas a carta de Arthur desaparecera completamente. Revirei tudo, depois chamei a sra. O’Brien e procuramos juntos, mas em vão. A despeito de todas as minhas negativas, a sra. O’Brien achou que eu a estivesse acusando… Mas que fim poderia ter levado? Por sorte, recordo o endereço.


19 de setembro

Cheguei. Encontrei Arthur. Neste exato momento, ele está no outro quarto e eu deveria estar me preparando para dormir. Mas algo me diz que não conseguirei pregar os olhos esta noite. Estou estranhamente tenso, embora não haja nem sombra de justificativa para meu desassossego. Eu deveria estar alegre por ter reencontrado meu amigo. No entanto…

Cheguei a Baltimore às onze da manhã. Fazia calor e o dia estava bonito, e dei uma volta próximo à estação antes de chamar um táxi. O motorista parecia bem familiarizado com o endereço que lhe passei e fomos em frente, cruzando a ponte.

Ao se aproximar meu destino, comecei a me sentir apreensivo e ansioso. Mas a corrida durou mais do que eu esperava – a rua Marathon parecia ficar nos subúrbios da cidade. Finalmente viramos numa rua poeirenta, pavimentada apenas em trechos e flanqueada por tílias e choupos. As folhas caídas estalavam sob os pneus. O sol de setembro era escaldante. O táxi parou em frente a uma casa no meio dum quarteirão em que não havia mais do que seis residências. O prédio ficava entre dois terrenos baldios, no fundo de um longo e estreito quintal lotado de árvores.

Paguei ao motorista, abri o portão e entrei. As árvores eram tão cerradas que só tive uma boa visão da casa quando estava no meio do caminho. Era um prédio de tijolos de três andares em bom estado de conservação, embora solitário e aparentando estar deserto. As persianas estavam fechadas em todas as janelas com exceção de duas, uma no primeiro andar e outra no segundo. Nenhum sinal de vida, nenhum gato ou garrafa de leite que quebrasse a monotonia das folhas que acarpetavam o alpendre.

Porém, superando meu mal-estar, coloquei resolutamente a mala no alpendre e toquei com força o antiquado sino na entrada. Um tinido alarmante quebrou o silêncio. Esperei, mas não houve resposta.

Passado um minuto, toquei de novo. Então, de dentro da casa, veio um estranho som de arrastar, como se alguém se aproximasse lentamente pelo corredor. A maçaneta girou e a porta se abriu. Apoiada numa muleta, uma velha senhora mirrada, cheia de rugas e de olhos leitosos, apareceu.

— Esta é a casa do sr. Barker? — perguntei.

Ela assentiu, me olhando de um modo curioso, mas não fez menção de me convidar para entrar.

— Bem, estou aqui para vê-lo — falei. — Somos amigos. Ele pediu que eu viesse.

Nisso ela se arrastou um pouco para o lado.

— Ele está lá em cima — disse ela numa voz rachada que era pouco mais que um sussurro. — Não posso levá-lo até lá. Há dez anos não sei o que é subir uma escada.

— Não tem problema — respondi, e, pegando minha mala, tomei o longo corredor.

— No topo da escada — sussurrou a voz atrás de mim. — A porta no final do corredor.

Subi a escadaria fria e escura, percorri o curto corredor até o fim e parei diante de uma porta fechada. Bati.

— Entre.

Era a voz de Arthur, só que… não era.

Abri a porta e o vi sentado no sofá, ombros curvados, olhos erguidos para encontrar os meus.

Dez anos não o haviam mudado tanto assim. Lembrava dele como um sujeito de altura mediana, propenso a engordar, de rosto corado e penetrantes olhos acinzentados. Ainda era corpulento, mas havia perdido a cor e os olhos estavam baços.

— E onde você esteve esse tempo todo? — inquiri, passados os primeiros cumprimentos.

— Aqui — ele respondeu.

— Nesta casa?

— Sim.

— Mas por que não deu notícia?

Parecia estar se esforçando para falar.

— Para quê? Achei que ninguém se importava.

Talvez fosse minha imaginação, mas não conseguia me livrar da ideia de que Arthur me encarava obstinadamente, tentando, com os olhos descorados, me dizer algo bem diferente do que diziam seus lábios.

Senti frio. Embora as persianas estivessem abertas, o cômodo era obscurecido pelos galhos das árvores pressionados contra a janela. Arthur não me estendera a mão, parecia não saber direito como me dar as boas-vindas. Entretanto, uma coisa era certa: ele precisava de minha ajuda e queria que eu soubesse disso.

Busquei uma cadeira e aproveitei para olhar o cômodo. Era um quarto típico de casas de pensão, não muito grande, papel de parede florido, capacho gasto, tapetes ordinários, lavatório num canto, cômoda em outro, uma mesa no centro, duas ou três cadeiras e o sofá, que evidentemente servia de cama para Arthur. Mas era frio, estranhamente frio para um dia quente.

Os olhos de Arthur vaguearam, indecisos, para minha mala. Esforçou-se para levantar.

— Seu quarto é por aqui — falou, indicando com o dedão.

— Não, espere — protestei. — Vamos falar de você primeiro. Qual é o problema?

— Estive doente.

— Você tem médico? Se não, posso chamar um.

Isso causou-lhe um sobressalto, com o que exibiu o primeiro sinal de disposição.

— Não, Tom, não faça isso. Nenhum médico pode me ajudar agora. Além do mais, eu os detesto. Tenho medo deles.

Sua voz foi diminuindo e me apiedei de sua agitação. Decidi deixar o assunto morrer por enquanto.

— Tudo bem — concordei, sem fazer questão.

Acompanhei-o até meu quarto, adjacente ao dele e mobiliado basicamente da mesma forma. Mas havia duas janelas, uma de cada lado, que davam para os terrenos baldios. Consequentemente, e para minha satisfação, era mais iluminado. No canto mais afastado, notei uma porta fechada com pesadas trancas.

— Há mais um cômodo — disse Arthur, enquanto eu descarregava meus pertences. — Você vai gostar. Mas temos que passar pelo banheiro.

Atravessando às palpadelas o banheiro bolorento, no qual tremeluzia uma minúscula chama de gás, saímos num cômodo amplo, quase suntuoso. Era uma biblioteca, bem mobiliada, acarpetada e prenhe de prateleiras atulhadas de livros. Senão pelo frio e pela pouca luz, era perfeita. Enquanto eu explorava, Arthur me seguia com os olhos.

— Há algumas obras raras em botânica…

Já os havia descoberto, três volumes de valor inquestionável. Não pude esconder minha satisfação.

— Isso vai garantir que você não fique entediado…

A despeito de minha ansiedade, apurei os ouvidos. Não havia, naquele tom de voz monótono, nenhuma simpatia por meu contentamento. Era frio e cansado.

Após satisfazer minha curiosidade, voltamos ao quarto principal e Arthur se jogou, ou melhor, se deixou cair no sofá. Eram quase cinco horas e estava bem escuro. Enquanto acendia a luz, ouvi um barulho como que de batidinhas na parede no andar de baixo.

— É a velha — explicou Arthur. — Ela cozinha para mim, mas não consegue subir para servir as refeições.

Esforçou-se para levantar, mas vi que estava exausto.

— Fique aí. Eu busco o jantar.

Para minha surpresa, achei a comida apetitosa e bem-feita, e, apesar de não gostar da aparência da velha senhora, comi com gosto. Arthur levou aos lábios algumas poucas colheres de sopa, que mal tocou, e esfarelou distraidamente um naco de pão no prato.

Assim que levei as louças, Arthur se enrolou num roupão castanho avermelhado, se esticou no sofá e pediu que eu apagasse a luz. Atendida sua solicitação, ouvi novamente a voz fraca perguntando se eu tinha tudo de que precisava.

— Tudo — confirmei; depois, silêncio.

Vim para meu quarto, fechei a porta e aqui estou, sentado, inquieto, entre as duas janelas de fundos que dão para os terrenos baldios.

Desfiz as malas e desarrumei a cama, mas hesito em me deitar. Verdade seja dita, me desagrada apagar a luz… Incomoda a maneira como os galhos nus batem nos vidros. E meu coração entristece quando penso em Arthur.

Encontrei meu velho amigo, mas já não é meu velho amigo. Por que me encara de modo tão estranho? O que quer me dizer?

Mas esses são pensamentos mórbidos. Tenho de tirá-los da cabeça. Vou para a cama e terei uma boa noite de sono. E acordarei amanhã achando tudo certo e como deve ser.


26 de setembro

Estou aqui há uma semana e me adaptei a essa estranha existência como se outra não conhecesse. No dia seguinte ao de minha chegada, descobri que o terceiro volume da coleção de botânica estava em latim e assumi a missão de traduzi-lo. É uma tarefa árdua, e quando me afundo numa das cadeiras da biblioteca, o tempo voa depressa.

Ando alguns quilômetros todos os dias para cuidar da saúde. Tenho tentado convencer Arthur a fazer o mesmo, mas ele, que costumava ser tão ativo, se recusa a sair da casa. Não admira seu abatimento, tanto físico quanto moral, e as sombras azuladas em torno dos olhos e das têmporas.

O que ele faz o dia inteiro? Sempre que entro no quarto, está deitado no sofá, com um livro ao lado que nunca lê. Não parece sentir dor, já que nunca se queixa. Após inúmeras tentativas infrutíferas de fazê-lo se consultar, desisti de mencionar médicos. Sinto que seu problema, mais do que físico, é mental.


28 de setembro

Dia chuvoso. Um aguaceiro desde as primeiras horas da manhã. E à tarde aconteceu uma coisa estranha.

Como não pude sair para minha caminhada, resolvi pela manhã fazer uma faxina. E em boa hora! Poeira e lixo em toda parte. O banheiro, que não tem janela e só recebe luz artificial, estava cheio de baratas e outros insetos. Claro que não invadi o quarto de Arthur, mas dele não ouvi enquanto varria e espanava.

Almocei bem e me recolhi à biblioteca, sentindo-me bastante confortável. Não parava de chover e havia esfriado tanto que decidi acender o fogo. Mas ao me acercar de meus cadernos e anotações, esqueci do frio.

Lembro que estava na parte sobre Aster tripolium, uma espécie rara, pouco vista no país. Virando a página, encontrei um exemplar dessa mesma espécie, seco e prensado, colado à margem. Acima, na letra de Arthur, lia-se: “27 de setembro de 1912”.

Estava me inclinando para examiná-lo quando senti um vago temor. Parecia-me haver alguém na sala me observando. Entretanto, não percebera a porta se abrir nem ninguém entrar. Virei bruscamente e dei de cara com Arthur, em seu roupão castanho avermelhado, de pé quase ao meu lado.

Estava sorrindo, primeiro sorriso desde minha chegada, e seus olhos embaciados brilhavam. Mas não gostei do sorriso. Afastei-me dele num espasmo que não pude evitar. Apontou para a áster.

— Brotou no quintal, embaixo de uma tília. Encontrei ontem.

— Ontem! — gritei, nervos à flor da pele. — Pelo amor de Deus, homem! Veja! Isso foi há dez anos!

Seu sorriso se apagou.

— Há dez anos — repetiu, roufenho. — Há dez anos?…

Saiu da sala com a mão na testa e ainda balbuciando: — Há dez anos!

Quanto a mim, esse tolo incidente ficou na minha cabeça e me impediu de fazer qualquer trabalho satisfatório… 27 de setembro… É verdade, foi ontem – dez anos atrás.


1º de outubro, uma da tarde

Que bela manhã, sol brilhando em céu aberto e um toque de frio no ar. O trabalho na biblioteca progrediu esplendidamente ontem e uma carta da sra. O’Brien chegou hoje na primeira leva de correspondência. Diz ela que os crisântemos Scarab floresceram. Preciso definitivamente dar um pulo em casa antes que pereçam.

Ao acender um charuto após o café, bati os olhos em Arthur e fiquei chocado com a diferença. Pois ele está diferente. Pergunto se minha presença não fez bem a ele. Quando cheguei, parecia sem energia, quase entorpecido, mas agora está ficando inquieto. Anda de um lado para o outro sem parar e às vezes mostra vontade de conversar.

Sim, tenho certeza de que está melhor. Vou sair agora para minha caminhada e estou convencido de que, em uma semana, terei sua companhia.

Cinco horas

Está escurecendo. Oh Deus! O que me abate? Serei o mesmo homem que deixou esta casa há três horas? E o que aconteceu!…

A caminhada foi esplêndida e eu estava voltando para casa de ótimo humor. Mas ao dobrar a esquina e avistar a casa, foi como dar de cara com a própria morte. Com que esforço me arrastei escada acima, e quando olhei para o cômodo ensombrecido e vi o homem curvado no sofá me olhando fixamente, tive vontade de gritar. Queria fugir, buscar o ar livre e frio e correr – correr e nunca mais voltar! Mas consegui me controlar e obriguei meus pés a me levarem ao quarto.

Há uma carga de desesperança em meu coração. A escuridão avança, engolindo tudo, mas não tenho ânimo para acender a luz…

Agora há um bruxuleio no quarto da frente. Sou um tolo; preciso me recompor. Arthur está acendendo as luzes, e posso ouvir as batidas no andar térreo anunciando o jantar…

Algo estranho me ocorre agora, e é curioso que não tenha percebido antes. Estamos prestes a nos sentar para jantar. Arthur não comerá praticamente nada, pois não tem apetite. No entanto, continua corpulento. Não pode ser gordura saudável; mesmo assim, me parece que alguém que come tão pouco quanto ele acabaria virando um esqueleto.


5 de outubro

Preciso mesmo procurar um médico ou acabarei com uma crise nervosa. Estou agindo como um garotinho. Noite passada, perdi o controle e banquei o covarde.

Fui me deitar cedo, cansado após um duro dia de trabalho. Chovia de novo e, da cama, eu olhava a água escorrendo pelos vidros. Ninado pelo sussurrar do vento entre as folhas, adormeci.

Acordei (depois de quanto tempo não sei dizer) sentindo um toque frio no braço. Por um instante, fiquei paralisado de medo. Podia ter gritado, mas me faltava a voz. Consegui, por fim, me sentar e afastar o toque. Procurei os fósforos e acendi o gás.

Arthur estava ao lado de minha cama – Arthur com seu indefectível roupão castanho avermelhado. Estava agitado. Seu rosto azulado tinha um quê de amarelo e seus olhos reluziam.

— Escute! — sussurrou.

Prestei atenção, mas não ouvi nada.

— Não está ouvindo? — arfou, apontando para cima.

— Lá em cima? — balbuciei. — Tem alguém lá em cima?

Apurei os ouvidos e pensei, enfim, captar um som fugidio, como que de suaves passadas.

— Deve ter alguém lá em cima — sugeri.

Mas, com essas palavras, Arthur pareceu enrijecer. A agitação morreu em seu rosto.

— Não! — gritou, num tom áspero e veemente. — Não! Não tem ninguém lá em cima!

E voltou para o seu quarto.

Fiquei um longo tempo tremendo, com medo de me mexer. Por fim, preocupado com Arthur, levantei e me esgueirei até a porta. Estava deitado no sofá, com o rosto iluminado pela lua, aparentemente adormecido.


6 de outubro

Tive hoje uma conversa com Arthur. Ontem, não tive coragem de mencionar o ocorrido na noite anterior, mas todo esse absurdo precisa ser esclarecido.

Estávamos na biblioteca. O fogo ardia na lareira e Arthur estava com os pés apoiados no guarda-fogo. Os chinelos que usa, aliás, são tão questionáveis quanto o roupão. São chinelos de feltro velhos, gastos e puídos dos lados, como se tivessem sido roídos por ratos. Não sei por que não compra um novo par.

— Diga, meu velho — comecei, abrupto —, essa casa é sua?

Ele assentiu.

— Você não aluga nenhum cômodo?

— O térreo, para a sra. Harlan.

— E o terceiro andar?

Ele hesitou, depois negou com a cabeça.

— Não, é inconveniente. Só tem um jeito de chegar ao terceiro andar.

Isso me surpreendeu.

— Minha nossa! É verdade. Onde fica a escada?

Olhou-me em cheio nos olhos.

— Lembra da porta trancada no canto do seu quarto? A escada fica atrás da porta.

Eu lembrava, e de algum modo a memória me deixou desconfortável.

Calei e decidi não mencionar o acontecido. Ocorreu-me que Arthur poderia estar sonambulando.


8 de outubro

Quando saí para caminhar na terça-feira, aproveitei para visitar dr. Lorraine, um velho amigo. Ele expressou surpresa com minha aparente indisposição e me passou uma receita.

Planejo ir para casa semana que vem. Vai ser uma maravilha andar no jardim e ouvir a sra. O’Brien cantando na cozinha!


9 de outubro

Talvez seja melhor adiar minha viagem. Mencionei-a casualmente a Arthur esta manhã.

Ele estava deitado no sofá, muito relaxado, mas quando falei em partir, sentou-se reto como um fuso. Seus olhos quase faiscavam.

— Não, Tom, não vá!

Havia medo em sua voz, e súplica tamanha que me deixou com o coração apertado.

— Você passou dez anos aqui sozinho — protestei. — E agora…

— Não é isso — falou. — É que se você for, nunca mais vai voltar.

— É essa a fé que você deposita em mim?

— Tenho fé, Tom. Mas se você for, nunca mais vai voltar.

Achei por bem atender aos caprichos de um homem doente.

— Muito bem — concordei —, então eu fico. Pelo menos por algum tempo.


12 de outubro

O que é que paira como uma nuvem sobre esta casa? Já não posso negar que existe alguma coisa – alguma coisa indescritível, opressiva. Parece impregnar toda a vizinhança.

Todas as casas desse quarteirão estão vazias? Se não, por que nunca vejo crianças brincando na rua? Por que são tão raros os transeuntes? E por que, quando vislumbro alguém da janela da frente, a pessoa está sempre se afastando com pressa?

Estou deprimido de novo. Sei que preciso mudar de ares, e pela manhã disse a Arthur que estava mesmo de partida.

Para minha surpresa, não fez objeção. Na verdade, sussurrou uma palavra de aprovação e sorriu. O mesmo sorriso daquela manhã na biblioteca quando apontou para a Aster tripolium. Aquele sorriso de que não gosto. De todo modo, está decidido. Parto semana que vem, na quinta, dia 19.


13 de outubro

Tive um sonho estranho noite passada. Sonho? Foi tão vívido… E se repetiu o dia inteiro sem parar.

No sonho, eu estava na cama. O luar iluminava o quarto, de modo que os móveis eram bem visíveis. A posição da cômoda é tal que, quando estou deitado de costas, com a cabeça erguida pelo travesseiro, miro em cheio o espelho.

Sonhei que estava deitado dessa maneira e encarando o espelho, o que me permitia ver a porta trancada no canto mais afastado do quarto. Tentava afastá-la da mente, pensar em outras coisas, mas meus olhos eram atraídos por ela como que por um ímã.

Parecia-me haver alguém no quarto, um vulto que eu não conseguia distinguir. Chegou-se à porta e agarrou os trincos. Fez força para abri-los, mas em vão – eles não se moviam.

Então o vulto se virou e mostrou o rosto agonizante. Era Arthur! Reconheci o roupão castanho avermelhado.

Sentei na cama e gritei seu nome, mas ele se fora. Corri até seu quarto e ele estava lá, dormindo estirado à luz da lua. Deve ter sido um sonho.


15 de outubro

O clima agora é de veranico – o calor é quase sufocante. Passei o dia inteiro zanzando, incapaz de me concentrar no que fosse. Estava me sentindo tão só pela manhã que, quando fui levar as louças do café, tentei encetar uma conversa com a sra. Harlan.

Até então, eu a considerara tão solene e pouco comunicativa quanto a Esfinge, mas ao pegar a bandeja de minhas mãos, suas rugas assumiram a aparência de um sorriso. Naquele momento, ela me pareceu positivamente parecida com Arthur. Foi o sorriso ou a expressão em seus olhos? Terá ela, também, algo a me contar?

— A senhora não se sente sozinha aqui? — perguntei, demonstrando simpatia.

Fez que não com a cabeça.

— Não, senhor, já estou acostumada. Não tenho nenhum outro lugar para ir.

— E a senhora espera passar o resto da vida aqui?

— Não deve ser lá muito tempo — falou, e voltou a sorrir.

Suas palavras foram simples e diretas, mas a maneira como me olhou ao proferi-las pareceu lhes conferir um duplo sentido. Afastou-se, coxeando, e eu subi e escrevi à sra. O’Brien avisando para me esperar cedo na manhã do dia 19.


18 de outubro, dez da manhã

Vou pegar o trem da meia-noite. Graças a Deus tomei a decisão de ir embora! Mais uma semana vivendo assim e acabaria louco. E talvez Arthur esteja certo – talvez eu nunca mais volte.

Pergunto que tipo de fracote me tornei para desertá-lo dessa maneira quando ele mais precisa de mim. Não sei. Não me reconheço mais…

Mas claro que voltarei. Tem a tradução, por exemplo, que está progredindo soberbamente. Jamais me perdoaria por abandoná-la num ponto tão crucial.

Quanto a Arthur, quando eu voltar, não pretendo mais indulgenciá-lo. Vou tomar as rédeas e fazer o necessário para que melhore. Ar fresco, mudança de cenário, um bom médico, é disso que ele precisa.

Mas qual é a natureza de sua moléstia? Será a influência desta casa que o aflige como uma praga? Pode-se imaginar que sim, vez que está tendo em mim o mesmo efeito.

Sim, cheguei ao ponto de não conseguir mais dormir. À noite, permaneço acordado e tento afastar os olhos do espelho do outro lado do quarto. No fim, me pego sempre o encarando – olhando para a porta trancada. Minha vontade é levantar e abrir os trincos, mas tenho medo.

Como as horas se arrastam! A noite não chega!

Nove da noite

Fiz as malas e arrumei o quarto. Arthur deve estar dormindo… Temo que a despedida seja dolorosa. Tenho de partir às onze para não me preocupar com a hora… Está começando a chover…


19 de outubro

Enfim! Aconteceu! Estou louco! Eu sabia! Sentia a insanidade formigando o tempo todo! Não passei um mês nesta casa? Não vi…? Para ver o que vi, viver um mês como vivi, só mesmo estando louco…

Eram dez horas. Esperava, impaciente, passar a última hora. Estava sentado numa cadeira de balanço junto à cama, mala ao lado, de costas para o espelho. Havia parado de chover. Devo ter cochilado.

Mas acordei de repente, coração aos pulos. Alguma coisa me tocara. Levantei de um salto e, virando bruscamente, encarei o espelho. Nele, a porta, como na outra noite, e o vulto mexendo no trinco. Dei meia-volta, mas não havia nada lá.

Disse a mim mesmo que estava sonhando de novo, que Arthur estava dormindo em seu quarto. Mas ao abrir a porta e olhar, estremeci. O quarto estava vazio, a cama não estava desfeita. Acendendo um fósforo, passei pelo banheiro e fui até a biblioteca.

A lua aparecera de trás de uma nuvem e um jorro prateado entrava pela janela, mas Arthur não estava lá. Voltei, trôpego, ao meu quarto.

Também lá havia luar… E a porta, a porta no canto estava entreaberta. Alguém abrira o trinco. Na penumbra, viam-se apenas degraus ascendentes.

Já não podia hesitar. Risquei outro fósforo e subi a escadaria escura.

No topo, trevas, pois as persianas estavam completamente fechadas. Imaginando que o cômodo fosse uma réplica do andar de baixo, tateei a parede em busca da saída de gás. A chama tremulou um instante, depois luziu abertamente.

Oh Deus! O que era isso que eu via? Uma mesa com uma grossa camada de poeira e, com os cotovelos nela apoiados, uma coisa enrolada num roupão castanho avermelhado.

Quanto tempo deve ter permanecido ali até ficar mais ressequido que a poeira sobre a mesa! Durante quantos mil dias e noites decaiu a carne daquela caveira sorridente!

Os dedos ossudos ainda seguravam uma caneta. À sua frente havia uma folha de papel, amarelada pelo tempo. Com dedos trêmulos, afastei a poeira. Estava datada 19 de outubro de 1912. Lia-se:

“Caro Tom,
se importaria de passar alguns dias comigo, meu velho? Receio estar numa pior…”

Tradução:
Rodrigo R. Carmo

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