Sredni Vashtar, de Saki

Conradin tinha dez anos e a opinião profissional do médico era de que não chegaria aos quinze. O médico era obsequioso, ineficaz e de pouca importância, mas sua opinião era referendada pela sra. de Ropp, cuja importância era quase absoluta. Sra. de Ropp era prima e tutora de Conradin e, aos olhos do menino, representava aqueles três quintos do mundo que são necessários, desagradáveis e reais; os outros dois quintos, em perpétuo antagonismo com os anteriores, se resumiam a ele mesmo e a sua imaginação. Dia desses, supunha Conradin, ele sucumbiria à pressão esmagadora de coisas necessárias e enfadonhas – tais como doenças, proibições diversas e tédio prolongado. Sem sua imaginação, desenfreada sob a espora da solidão, teria sucumbido há muito tempo.

Sra. de Ropp jamais, nem em seus momentos de maior honestidade, confessaria a si mesma desgostar de Conradin, embora tivesse vaga consciência de que contrariá-lo “para seu próprio bem” fosse uma obrigação que não considerava particularmente penosa. Conradin a odiava com desesperada sinceridade, a qual dissimulava perfeitamente. Os poucos passatempos que inventava se tornavam mais satisfatórios diante da possibilidade de desagradarem sua tutora, e do reino de sua imaginação ela estava excluída – algo impuro, que não devia ganhar acesso.

No jardim triste e sem graça, vigiado por tantas janelas prestes a se abrir com uma mensagem para não fazer isso ou aquilo ou um lembrete de que estava na hora dos remédios, encontrava poucos atrativos. As escassas árvores frutíferas estavam zelosamente apartadas de sua colheita, como se fossem espécimes raros florescendo em terreno árido; dificilmente se acharia um quitandeiro que oferecesse dez xelins por toda sua produção anual. Em um canto esquecido, entretanto, quase escondido atrás de um escuro arbustal, havia um galpão abandonado de bom tamanho onde Conradin encontrava refúgio, um espaço que assumia os variados aspectos de sala de jogos e catedral. Ele o havia povoado com uma legião de fantasmas familiares, evocados em parte de fragmentos históricos e em parte de seu próprio cérebro, mas tinha também dois hóspedes de carne e osso. Num dos cantos vivia uma esfarrapada galinha Houdan, à qual o menino dedicava uma afeição que dificilmente teria outro objeto. Mais atrás, na penumbra, ficava uma grande gaiola dividida em dois compartimentos, um dos quais era guarnecido de cerradas barras de ferro. Um aprendiz de açougueiro, em troca de uma secreta coleção de moedinhas, a contrabandeara até ali – e, junto dela, seu ocupante, um grande mestiço de doninha e furão. Conradin tinha um medo terrível do bicho ágil e de dentes afiados, mas ele era seu bem mais precioso. Sua mera presença no galpão era uma alegria secreta e terrível, a ser escrupulosamente guardada da Mulher (como apelidara a prima). Certo dia, a partir de sabe-se lá que material, urdiu um nome maravilhoso para a fera, que, daquele momento em diante, se tornou um deus e uma religião. A Mulher se dedicava à religião uma vez por semana numa igreja próxima, fazendo-se acompanhar por Conradin, para quem, no entanto, o serviço religioso era um rito estranho na Casa de Rimmon. Às quintas-feiras, na penumbra silenciosa e embolorada do galpão, ele oficiava, com místico e elaborado cerimonial, diante da gaiola de madeira onde vivia Sredni Vashtar, o grande furão. Flores vermelhas da estação e bagas escarlates no inverno eram oferendadas em seu altar, pois era um deus que favorecia o lado feroz e impaciente das coisas, ao contrário da religião da Mulher, que, segundo observava Conradin, fazia grandes esforços na direção contrária. Nos grandes festivais, espargia diante da gaiola noz-moscada em pó, e um traço importante era que a noz-moscada tinha de ser roubada. Esses festivais ocorriam em intervalos irregulares e serviam principalmente para celebrar eventos fortuitos. Quando a sra. de Ropp padeceu de uma dor de dentes aguda que durou três dias, Conradin conservou o festival durante todo esse tempo, e quase chegou a se convencer de que Sredni Vashtar era pessoalmente responsável pela dor. Mais um dia e o suprimento de noz-moscada teria se esgotado.

A Houdan nunca se convertera ao culto de Sredni Vashtar. Conradin há muito decidira que ela era anabatista. Não fingia fazer a mais remota ideia do que fosse um anabatista, mas secretamente torcia para que fosse arrojado e não muito respeitável. A sra. de Ropp servia de base para que Conradin detestasse toda e qualquer respeitabilidade.

Passado algum tempo, a dedicação de Conradin ao galpão começou a atrair a atenção de sua tutora. “Não é bom para ele passar tanto tempo ali com esse clima”, decidiu prontamente, e, certa manhã, durante o desjejum, anunciou que a Houdan havia sido vendida e levada durante a noite. Seus olhos míopes sondaram Conradin à espera de um surto de raiva e mágoa que ela estava pronta a reprimir com um desfile de excelentes preceitos e arrazoados. Mas Conradin nada disse; não havia o que dizer. Alguma coisa em seu rosto lívido e impassível talvez tenha despertado nela um momentâneo escrúpulo, porque, para o chá da tarde, havia torrada na mesa, uma iguaria geralmente interdita sob a justificativa de que era ruim para ele; também porque seu preparo dava “muito trabalho”, uma ofensa mortal aos olhos femininos de classe média.

— Pensei que gostasse de torrada — exclamou ela, contrariada, ao observar que Conradin não havia tocado na dita cuja.

— Às vezes — respondeu Conradin.

Naquela tarde, no galpão, o culto do deus engaiolado sofreu uma alteração. Até então, Conradin não fizera mais do que cantar suas orações; dessa vez, pediu uma dádiva.

— Faça-me um favor, Sredni Vashtar.

O favor não foi especificado. Sendo Sredni Vashtar um deus, ele deveria saber. Então, sufocando um soluço ao olhar para o canto oposto, vazio, Conradin voltou para o mundo que tanto odiava.

Todas as noites, na bem-vinda escuridão de seu quarto, e todas as tardes, na penumbra do galpão de ferramentas, se repetia a amarga litania de Conradin: — Faça-me um favor, Sredni Vashtar.

A sra. de Ropp percebeu que as visitas ao galpão não haviam cessado e, certo dia, resolveu fazer uma nova inspeção.

— O que tem naquela gaiola trancada? — perguntou. — Acho que são porquinhos-da-índia. Vou mandar que se livrem deles.

Conradin apertou bem os lábios, mas a Mulher revirou seu quarto até encontrar a chave cuidadosamente escondida e, sem demora, rumou para o galpão para coroar sua descoberta. Era uma tarde fria e Conradin recebera ordem de ficar em casa. Da última janela da sala de jantar dava para ver a porta do galpão por trás do arbustal; ali se postou Conradin. Viu a Mulher entrar e a imaginou abrindo a porta da gaiola sagrada e espreitando com os olhos míopes a espessa cama de palha onde seu deus estava escondido. Talvez, em sua impaciência, ela cutucasse a palha. E Conradin sussurrou fervorosamente sua prece pela última vez. Mas sentia, ao rezar, que não acreditava de fato. Sabia que a Mulher logo sairia com aquele sorriso franzido que ele tanto detestava no rosto e que, dentro de uma ou duas horas, o jardineiro levaria embora seu deus maravilhoso, não mais divino, um simples furão numa gaiola. E sabia que a Mulher triunfaria sempre como triunfava agora, e que ele ficaria cada vez mais doente à mercê de suas perseguições, de sua tirania e de seu ar de superioridade, até que, um dia, nada importaria muito mais para ele e as palavras do médico se tornariam verdade. E, na dor e miséria de sua derrota, começou a entoar, em desafio e em voz alta, o hino de seu ídolo ameaçado:

Sredni Vashtar avançou:
Seus pensamentos eram rubros e seus dentes, brancos.
Seus inimigos pediram paz, mas ele lhes trouxe morte.
Sredni Vashtar, o Belo.

De repente, interrompeu o cântico e se aproximou da janela. A porta do galpão continuava entreaberta, como a prima a deixara, e os minutos passavam. Eram longos minutos, mas passavam assim mesmo. Observava os pequenos grupos de estorninhos correndo e esvoaçando pelo gramado; contou-os uma, duas vezes, sempre com um olho na porta oscilante. Uma criada de semblante azedo entrou para pôr a mesa do chá; Conradin continuava esperando e observando. A esperança se infiltrava aos poucos em seu coração e um olhar de triunfo começava a reluzir no rosto que, até então, só conhecia a melancólica paciência da derrota. Baixinho, com uma exultação furtiva, retomou o hino de vitória e devastação. Não demorou para que seus olhos fossem recompensados: saía pela porta, ao rés do chão, um comprido animal marrom e amarelo que piscava à luz do entardecer; o pelo ao redor da boca e do pescoço tinha manchas escuras e úmidas. Conradin caiu de joelhos. O grande furão-doninha foi até um córrego na parte inferior do jardim, bebeu um pouco, atravessou uma pequena ponte de tábuas e desapareceu em meio aos arbustos. Assim partiu Sredni Vashtar.

— O chá está pronto — disse a criada de semblante azedo —; onde está a patroa?

— Entrou no galpão não faz muito tempo — respondeu Conradin.

E enquanto a criada saía para chamar a patroa, Conradin pescou da gaveta do aparador um garfo de tostar e começou a preparar uma torrada. Durante todo o processo de torrar o pão, passar bastante manteiga e comer com lenta satisfação, ficou ouvindo os ruídos e silêncios que se sucediam em rápidos espasmos para lá da porta da sala de jantar. Os tolos gritos da criada, o coro de interjeições que respondeu da cozinha, a correria e as urgentes embaixadas em busca de auxílio externo e, depois de uma pausa, os soluços pesarosos e o andar arrastado de quem carregava um pesado fardo.

— Quem vai contar ao pobre menino? Eu não tenho coragem! — exclamou uma voz estridente.

E, enquanto debatiam, Conradin serviu-se de outra torrada.


Tradução: Rodrigo R. Carmo

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