Glámr, de Sabine Baring-Gould

A história a seguir faz parte de Grettla, uma saga islandesa que nos chega na versão que lhe foi dada no século XIII, mas que é redação de uma saga muito mais antiga. Grande parte de sua narrativa é de natureza histórica e corroborada por outras sagas. O incidente aqui descrito foi acrescido a fim de explicar por que o fora da lei Grettir correria o risco que fosse para não passar sozinho as longas e escuras noites de inverno.


No começo do século XI, numa pequena fazenda no norte da Islândia, um pouco acima do vale das Sombras, vivia com sua esposa um valoroso pecuarista chamado Thorhall. Não era exatamente um caudilho, mas tinha suficiente influência para ser considerado respeitável; para ratificar sua condição, possuía um numeroso rebanho de ovelhas e umas boas cabeças de gado. Um infortúnio, apenas, tolhia a felicidade de Thorhall: seus pastos eram mal-assombrados.

Pastor nenhum permanecia em seu serviço; e não adiantava suborno, ameaça nem súplica; um a um, todos o deixavam, e as coisas chegaram a tal ponto que ele decidiu buscar conselho na próxima assembleia anual. Thorhall encilhou seus cavalos, carregou os alforjes, tomou os cabrestos, estalou seu longo chicote islandês e partiu a trote, chegando no devido tempo a Thingvellir.

O filho de Skapti Thorodd era legislador naquele tempo, e como fosse considerado por todos um homem da maior prudência, capaz de oferecer os melhores conselhos, nosso amigo do vale das Sombras foi diretamente ter com ele.

— Um grande apuro, certamente; possuir grandes rebanhos e não ter quem os pastoreie — disse Skapti, mordiscando a unha do polegar e balançando a sábia cachola, tão farta de leis quanto é de mirtilos um papo de lagópode. — Já que pediu meu conselho, vou ajudá-lo a conseguir um pastor; um tipo exótico, de pouco intelecto, mas forte como um touro.

— Desde que saiba tomar conta de ovelhas, pouco me importa a inteligência — respondeu Thorhall.

— Disso ele é inteiramente capaz, fique certo — treplicou Skapti. — É um sujeito forte e valente; um sueco de Sylgsdale, se é que já ouviu falar.

Perto do final da assembleia – Thing, como é chamada na Islândia –, desgarraram-se dois cavalos tordilhos pertencentes a Thorhall, que, falto de empregados, teve de persegui-los ele mesmo. Atravessou Sletha-asi, dobrou para a colina de Armann e, já na altura do bosque do Padre, encontrou um homem de aparência estranha que conduzia um cavalo carregado de fardos de lenha. O sujeito era alto e robusto; seu rosto atraiu involuntariamente a atenção de Thorhall, pois os olhos, de um cinza pálido, eram grandes e fitos; a mandíbula poderosa era guarnecida de dentes protrusos e muito brancos; e a fronte, emoldurada por mechas de grosso cabelo cinza-lobo.

— Diga-me, qual sua graça, meu rapaz? — perguntou o fazendeiro.

— Glámr, satisfação — replicou o lenhador.

Thorhall o encarou; então, com um tossido preliminar, perguntou se Glámr gostava de catar lenha.

— Não muito — foi a resposta —; prefiro a vida de pastoreio.

— Que tal vir comigo? — perguntou Thorhall. — Teus serviços foram-me cedidos por Skapti e tenho incomum necessidade de um pastor para o inverno.

— Se eu aceitar, será sob a condição de ir e vir quando eu bem entender. Aviso logo que sou um pouco truculento quando as coisas não saem como eu quero.

— Não me oponho — respondeu o pecuarista. — Posso contar contigo?

— Espere um instante! Você não disse se há algum inconveniente.

— Devo admitir que sim — disse Thorhall —; de fato, os pastos têm a má reputação de serem assombrados.

— Pff! Não sou homem de temer sombras — riu Glámr. — Negócio fechado; estarei contigo quando chegar o inverno.

Então cada um tomou seu rumo e o fazendeiro não demorou a encontrar seus pôneis. Depois de agradecer a Skapti pelo conselho e assistência, reuniu os cavalos e trotou para casa.

Passou o verão, foi-se o outono e nem sinal do novo pastor. As tempestades de inverno começaram a varrer a região, arrastando os flocos de neve e amontoando-os nos mais íntimos recessos do vale. Encheram-se de gelo os baixios; enregelaram-se os riachos que, no verão, desciam as escarpas acidentadas.

Certa noite, em meio à ventania, uma violenta batida na porta pôs toda a fazenda em alerta. Ato contínuo, Glámr, alto como um trol, adentrou o salão, uma expressão furiosa nos olhos selvagens, o cabelo cinzento escarchado, os dentes batendo de frio, o rosto avermelhado pelas brasas que ardiam no centro do salão. Thorhall pôs-se de pé e o cumprimentou efusivamente, mas sua esposa estava demasiado assustada para oferecer muita hospitalidade.

Passaram-se semanas; nas charnecas, o novo pastor era visto e ouvido diariamente a conduzir seu rebanho: o vento carregava a voz alta e profunda com que tangia as ovelhas. Na casa, sua presença era sempre motivo de pesar: quando falava, causava arrepios nas mulheres, que declaravam abertamente sua aversão por ele.

Próximo à vacaria havia uma igreja, mas Glámr nem passava perto; detestava salmodia; era, aparentemente, um cristão relapso. Na véspera do Natal, levantou cedo e pediu carne.

— Carne! — exclamou a dona da casa. — Ninguém que se diga cristão come carne no dia de hoje. Amanhã é Natal, estamos de jejum.

— Tudo superstição! — rosnou Glámr. — No que me diz respeito, a situação dos homens agora não é melhor do que nos velhos tempos pagãos. Traga carne e não me aborreça mais com isso.

— Fique certo de uma coisa — protestou a boa esposa —: desacatar a Igreja só trará má sorte.

Glámr mostrou os dentes e cerrou os punhos.

— Carne! Quero carne, senão…

Amedrontada e trêmula, a pobre mulher obedeceu.

Fazia um frio terrível e ventava muito; nuvens cinzentas chegavam do oceano Ártico e se acumulavam ao redor dos picos. Transportada pelo vento, uma neblina composta de minúsculas partículas de gelo varria de quando em quando o vale e estendia um manto de geada. Mais para o fim do dia, a neve começou a cair em flocos grandes como frouxel de êider. Em dado momento, o vento amainou e a voz profunda de Glámr, vinda das encostas, chegou com clareza à congregação que se reunia para as primeiras vésperas natalinas. Caiu a escuridão, funda como a dos abismos sem sol das cavernas subterrâneas, e a precipitação aumentou ainda mais. A luz que escapava pelas janelas da igreja projetava uma neblina amarela na noite e cada floco que dela se aproximava ganhava um tom dourado. O sino bateu para a missa vespertina e o vento carregou o som até os confins do vale; talvez tenha alcançado os ouvidos do pastor. Escutem! Alguém entreouviu um grito ou barulho distante – o que, exatamente, não soube dizer, porque o vento chiava e ciciava nos beirais da igreja, arremetendo-se depois, com um silvo feroz, contra a cerca do cemitério.

Terminado o serviço, Glámr não havia retornado. Thorhall sugeriu uma busca, mas ninguém o acompanharia. Pudera! Numa noite daquelas, nem um cão deveria estar ao relento; além do que, mais de trinta centímetros de neve se acumulava nas trilhas. A família passou a noite em claro, esperando, ouvindo, tremendo; mas Glámr não apareceu. O dia raiou, afinal, lívido e turvo no sul. Prestes a rebentar, nuvens prenhes de neve cobriam a paisagem como um dossel.

Um grupo de busca foi organizado às pressas. Acorreram aos morros e vasculharam com pente-fino o trecho entre os dois rios que se encontram em Vatnsdalr. Localizaram aqui e ali ovelhas desgarradas, ora tremendo sob uma rocha congelada, ora semienterradas na neve. Nenhum sinal do pastor, entretanto. Avistaram uma ovelha morta no fundo de um penhasco; dera um passo em falso no escuro e terminara em pedaços.

Logo chamou atenção do grupo uma área muito castigada na charneca onde uma intensa contenda se evidenciava: terra e rocha muito revolvidas e sangue em profusão manchando a neve. Uma trilha de sangue subia a montanha e os empregados da fazenda puseram-se a segui-la; retornaram, contudo, ao ouvir o grito angustiado de um dos rapazes. Ao investigar atrás de uma pedra, dera o garoto com o cadáver do pastor; estava lívido e inchado, do tamanho de um boi. Jazia de costas, com os braços abertos. Na agonia da morte, as mãos tumefeitas haviam juntado punhados de neve; o rosto cinzento mirava, com olhos fixos e vidrados, o vaporoso dossel. Pendia dos lábios roxos a língua, que, mordida nos espasmos finais, deixara escorrer um filete descolorido que era agora um pingente de gelo.

Com dificuldade, colocaram o morto numa padiola e o carregaram até a base duma encosta, mas daí não passaram: o peso do cadáver era cada vez maior. Embora fossem robustos os maqueiros e labutassem até o suor brotar da testa, deram-se por vencidos; o corpo foi deixado na ravina e os homens voltaram para a fazenda. No dia seguinte, esforços renovados para erguer a carcaça inchada de Glámr e transportá-la até solo consagrado deram em nada. No terceiro dia, um padre foi levado ao local, mas o corpo havia desaparecido. Seguiu-se outra expedição, desta vez sem o padre, e o cadáver foi encontrado; ergueram ao seu redor um túmulo de pedras.

Duas noites depois, um dos empregados que cuidavam das vacas irrompeu na casa-grande com expressão vaga e assustada; cambaleou até um assento e desmaiou. Voltando a si, asseverou, numa voz vacilante, que, ao deixar o estábulo, havia se avistado com Glámr. Ao entardecer do dia seguinte, encontraram, junto ao muro do pátio, um criado em pleno ataque convulsivo, do qual jamais se recuperou. Algumas mulheres, depois, sentindo-se observadas, deram, por uma das janelas da leiteria, com um rosto inchado e descorado que reconheceram como sendo o de Glámr. Ao anoitecer, o próprio Thorhall topou com o morto, que lhe dirigiu um olhar furioso, mas não atentou contra o patrão. Não parou por aí. À noite, passos pesados circundavam a casa e mãos tateavam as paredes; ora forçavam as janelas, ora arrancavam e quebravam o madeirame. Contudo, chegada a primavera, os distúrbios diminuíram, cessando completamente tão logo o sol readquiriu força máxima.

Naquele verão, uma embarcação norueguesa lançou âncora numa baía ali perto. Thorhall visitou o navio e encontrou a bordo um homem chamado Thorgaut que buscava trabalho.

— O que acha de pastorear minhas ovelhas? — perguntou o pecuarista.

— Isso me agradaria muito — respondeu Thorgaut. — Tenho a força de dois homens e sou pau para toda obra.

— Não posso contratá-lo sem antes alertar sobre as coisas terríveis que poderá encontrar durante a noite de inverno.

— E o que seriam?

— Fantasmas e duendes — respondeu o fazendeiro —; aprontam-me um bocado, posso assegurar.

— Não tenho medo — respondeu Thorgaut —; estarei contigo à época do abate.

Chegando no tempo combinado, o homem logo se tornou favorito da casa; brincava com as crianças, afagava o queixo das criadas, ajudava os outros empregados, elogiava a coalhada da patroa e era tão benquisto quanto fora detestado seu predecessor. Era um tanto imprudente, também, e não disfarçava seu desprezo pelo fantasma, expressando o desejo de encontrá-lo cara a cara – diante do que o patrão franzia o cenho e a patroa, trêmula, se benzia. Com o inverno se aproximando, estranhos barulhos e visões começaram a alarmar o pessoal, mas nunca perturbavam Thorgaut: seu sono era pesado demais para que ouvisse os passos à sua porta à noite; sua miopia, muito severa para que vislumbrasse o monstro cinzento que, no crepúsculo, rondava a passos largos o próprio túmulo.

A véspera de Natal chegou, enfim, e Thorgaut, como de costume, saiu com as ovelhas.

— Tome cuidado, homem — instou o pecuarista. — Não vá muito perto da ravina onde jaz Glámr.

— Não, não! Não se preocupe comigo. Estarei de volta para as vésperas.

— Deus permita! — suspirou a dona da casa. — Mas este não é dia de se arriscar.

Caiu o crepúsculo: um resto de luz pairava sobre o sul, uma faixa branca acima dos urzais. Ao longe, naquela direção, ainda era dia, mas aqui a escuridão chegava mais depressa, e os homens vinham de Vatnsdalr para a missa, para celebrar a noite em que Cristo nasceu. Véspera de Natal! Quanta diferença da Inglaterra saxã, onde se rola o grande cepo de freixo pelo salão à luz de tocha e círio; os mascarados dançam com seus alegres sininhos balouçantes; a cabeça do javali, de presas douradas, “ornada de azevinho e alecrim”, é introduzida pelo mordomo ao som de clarins.

Quanta diferença, também, onde, nessa mesma hora, se congrega o Varanger em torno do trono imperial na grandiosa igreja da Eterna Sabedoria. Do lado de fora, é suave o ar bafejado do Bósforo, que lampeja tremelicante sob as estrelas. Nos jardins do palácio, folhas de laranjeira e de louro ainda exalam suas fragrâncias no silêncio da noite de Natal.

Mas é diferente aqui. O vento corta como uma espada de dois gumes; blocos de gelo se chocam e rilham ao longo da costa e as águas do lago ficam duras como pedra. No alto, a aurora flameja em tons carmesins, arremetendo-se em longos feixes de luz contra o zênite, subitamente se dissolvendo em um oceano de pálida luz verde. Os nativos estão reunidos na porta da igreja, mas junto deles não está Thorgaut.

Encontram-no na manhã seguinte, estirado sobre o túmulo de Glámr, a espinha, a perna e os braços quebrados. Levado ao cemitério, é enterrado ao pé da cruz. Descansa em paz. Glámr, ao contrário, está mais furioso do que nunca. Ninguém quer trabalhar para Thorhall agora, à exceção de um velho vaqueiro que sempre serviu à família e há muito embalou o atual patrão nos joelhos.

— O gado vai se perder se eu me for — justificava o peão. — Ninguém dirá que eu desertei Thorhall por medo de um espectro.

A situação piorou rapidamente. Dependências externas eram arrombadas durante a noite, a carpintaria arrancada e despedaçada; a porta da residência sofria violentos assaltos e se fragmentava aos poucos; também as empenas da casa eram furiosamente sacudidas.

Certa manhã, antes do alvorecer, o velho entrou no estábulo. Uma hora depois, a patroa levantou, pegou os baldes de ordenha e o seguiu. Ao se aproximar da porta da estrebaria, um barulho terrível – o urro do gado misturado aos tons guturais de uma voz preternatural – fez com que voltasse, correndo e gritando, para casa. Thorhall pulou da cama, agarrou uma arma e correu para a vacaria. Ao abrir a porta, se deparou com os animais escornando uns aos outros. Havia alguma coisa em cima da pedra que separava as baias. Thorhall se aproximou, tocou-a, olhou de perto; era o vaqueiro, sem vida, os pés de um lado da laje, a cabeça do outro, a espinha partida. O pecuarista mudou-se com a família para Tunga, outra propriedade sua localizada mais abaixo no vale; era muito arriscado permanecer na fazenda assombrada durante os dias escuros de inverno; e só retornou ao vale das Sombras depois que o sol se mostrou em toda a sua glória e dissipou a noite com seus fantasmas. Nesse intervalo, sob o peso dos repetidos sustos do inverno, se deteriorara a saúde de sua filha; sua palidez era maior a cada dia; e, com as flores de outono, ela se foi, posta para dormir à sombra da igreja a tempo de as primeiras neves depositarem uma mortalha virgem sobre sua pequena sepultura.

Nessa época, Grettir – um herói de renome, nativo do norte da ilha – estava na Islândia. Como as assombrações do vale fossem assunto em todo o distrito, tomou conhecimento do fato e resolveu visitar o local. Preparou-se, então, para uma fria jornada, montou seu cavalo e só se deteve à entrada da fazenda de Thorhall, onde solicitou abrigo para a noite.

— Ahã! — pigarreou o pecuarista. — Você talvez não esteja a par…

— Estou perfeitamente ciente de tudo. Quero me avistar com o trol.

— Mas ele vai matar seu cavalo.

— Correrei o risco. Encontrarei Glámr e darei um fim a isso.

— Sua presença é muito bem-vinda — disse o pecuarista —; por outro lado, se algum mal lhe sobrevier, que não ponham a culpa em mim.

— Nada tema, homem.

Apertaram-se as mãos; o cavalo foi alojado no estábulo mais forte, Thorhall deu a Grettir a melhor recepção possível e, finalmente, como o visitante estivesse cansado, todos se recolheram.

A noite correu sem incidentes e nenhum som indicava a presença de um espírito indócil. O cavalo, no mais, foi encontrado pela manhã em boa condição, aproveitando seu feno.

— Que inesperado! — exclamou alegremente o pecuarista. — Agora, onde está sua sela? Vamos preparar sua montaria e boa viagem, até mais ver.

— Até mais ver! — ecoou Grettir. — Pernoitarei aqui uma vez mais.

— Melhor não — argumentou Thorhall —; se algo de mal lhe acontecer, sei que todos os seus me culparão.

— Estou decidido a ficar — disse Grettir, e sua determinação era tal que Thorhall desistiu de antagonizá-lo.

A calma continuou na noite seguinte; nem um ruído sequer perturbou o sono de Grettir. Pela manhã, acompanhou o fazendeiro ao estábulo. A pesada porta de madeira fora arrombada e estava caída no chão. Saltaram-na; Grettir chamou seu cavalo, mas não obteve resposta.

— Temo que… — começou Thorhall. Grettir avançou e encontrou morto o pobre animal, com o pescoço quebrado.

— Veja — disse rapidamente Thorhall —, tenho em Tunga um ótimo cavalo malhado, não demorarei a buscá-lo; sua sela está aqui, creio, e você terá tempo de chegar a…

— Pernoitarei aqui outra vez — interrompeu Grettir.

— Imploro que vá — pediu Thorhall.

— Meu cavalo foi morto!

— Mas eu lhe darei outro.

— Amigo — respondeu Grettir, voltando-se tão bruscamente que o fazendeiro recuou, meio assustado —, ninguém jamais me injuriou e escapou incólume. Agora, esse seu pastor endemoninhado matou meu cavalo. Hei de ensinar-lhe uma lição.

— Quem dera! — grunhiu Thorhall. — Mas mortal nenhum há de ser páreo para ele. Vá em paz e aceite a compensação que ofereço.

— Vingarei meu cavalo.

— Um homem obstinado fará o que bem entender! Mas se insiste em dar com a cabeça na parede, não venha reclamar quando quebrar o quengo.

Veio a noite; Grettir comeu bem e mostrou-se bem-humorado; nem tanto Thorhall, que tinha lá suas reservas. Na hora de dormir, este recolheu-se a seu leito, que, à moda das velhas camas islandesas, dava para o salão, tal qual os beliches em um camarote naval. Grettir, contudo, estava determinado a manter-se em vigília; acomodou-se, pois, em um banco, apoiando os pés no assento altivo e as costas no leito de Thorhall; em seguida, cobriu-se dos pés à cabeça com seu abrigo de pele, mantendo de fora o rosto pela abertura da gola a fim de observar o salão.

Havia um fogo aceso na lareira, um amontoado fumegante de brasas; de quando em quando, um ramo fulgurava e estalava, permitindo a Grettir vislumbrar os caibros, ele que, deitado, perscrutava com os olhos os mistérios do teto enegrecido pela fumaça. Suavemente assobiava o vento lá fora. Intermitente, o luar que entrava pelas janelas de clerestório, cobertas com âmnio de carneiro, era de um amarelo doentio, diferente do feixe de pura prata que se projetava pelo buraco de fumaça no teto. Do lado de fora, um cão começou a uivar; o gato, que até então observava recatadamente o fogo, se levantou com as costas arqueadas e o rabo eriçado e saiu em disparada, indo esconder-se em um canto, atrás de alguns baús. O estado da porta principal era lamentável. Havia sido tão castigada pelo espectro que apenas as escoras a mantinham de pé, e o luar entrava pelas frestas. O rio, que ainda não havia congelado, contornava a colina onde se localizava a fazenda chalreando em tons suaves por seu leito de cascalho. Grettir ouviu a respiração das mulheres adormecidas no cômodo contíguo e o suspiro da dona da casa ao se virar na cama.

Clique! Clique! É apenas a palha congelada no telhado estalando com o frio. O vento cessa por completo. A noite lá fora está muito quieta. Ouça! Um passo pesado, fazendo ceder a neve. Cada passo leva direto ao coração de Grettir. Acima, barulho de palha! Por todos os santos! O monstro está no telhado. Por um instante, o buraco da chaminé fica obscurecido: Glámr está olhando por ele; o brilho vermelho da brasa reflete em dois olhos baços. Então, o doce clarão da lua cheia retorna e os passos pesados de Glámr se encaminham para o outro extremo do salão. Um baque – ele saltou. Grettir sente as tábuas a suas costas vibrarem; Thorhall está desperto e tremendo em sua cama. Os passos seguem agora para os fundos da casa e o estalo de madeira se quebrando revela que a criatura está depredando algum dos anexos. Cansa-se disso, aparentemente, pois seus passos tomam agora o rumo da entrada principal. A lua se esconde atrás de uma nuvem aquosa e, na luz vacilante, Grettir pensa identificar dedos escuros se insinuando por cima da porta. Seu temor se confirma: com um sonoro crec, uma longa ripa é arrancada e a luz se infiltra. Crec, crec! Parte-se outra seção e a abertura aumenta. As treliças escapam de seus suportes e são arrancadas aos montes por um braço escuro que as atira longe. A porta é atravessada por uma barra em cuja extremidade há um ferrolho que se insere em uma cavidade na pedra. Com a luz acinzentada de fundo, Grettir vê a enorme silhueta se apoiar sobre a barra. Crac! Partiu-se, e o restante da porta cai por terra, em frangalhos.

— Oh, bom Deus! — exclama o pecuarista.

Furtivamente, o morto entra na casa, avançando às apalpadelas; está agora no salão, iluminado pelo clarão da fogueira. Uma visão assustadora; o corpanzil distendido pela corrupção do túmulo, desprovido de nariz, os olhos vagos e errantes, vitrificados pela morte, a pele amarelenta mosqueada pelo verde da putrefação; o cabelo e a barba cinza-lobo haviam crescido na sepultura e caíam, embaraçados, sobre os ombros e o peito; também as unhas haviam crescido. Uma visão repugnante – digna de arrepios, não de escrutínio.

Imóveis, sem vibrar nem um músculo agora, Thorhall e Grettir prendiam a respiração.

O olhar sem vida de Glámr passeou pelo cômodo; deteve-se na trouxa felpuda ao lado do assento altivo. Avançou, cauteloso. Grettir sentiu que o morto agarrava a extremidade do manto presa a seus pés e a puxava. A capa não cedeu. Outro puxão; Grettir firmou os pés nas colunas do assento para evitar que a manta fosse arrancada. O vampiro parecia confuso; agarrou a outra extremidade e puxou. Grettir resistiu, ancorando-se ao banco e à cabeceira da cama, mas o manto rasgou-se ao meio; o cadáver perdeu o equilíbrio, olhando confuso para a metade que segurava. Sem esperar que se recobrasse, Grettir levantou de um salto, curvou o corpo, cingiu com os braços a carcaça e, arremetendo a cabeça contra seu peito, esforçou-se por dobrá-la para trás e quebrar-lhe a espinha. Vã esperança! As mãos frias agarraram seus braços com força diabólica, abrindo-os. Grettir tornou a fechá-los; o monstro retribuiu o abraço e começou a arrastá-lo. O valente tentou ancorar os pés em bancos e colunas, mas a força do vampiro era maior; aproximavam-se os lutadores pouco a pouco da porta. Num movimento brusco, Grettir lançou os braços para o alto e agarrou uma das vigas do teto. Os pés perderam contato com o chão; os braços cadavéricos cingiam-no pela cintura e ameaçavam parti-lo ao meio; cada tendão se distendia; a tensão nos ombros se tornava excruciante, os músculos saltavam em nós. Mesmo com tudo isso, mantinha-se firme; o sangue lhe fugia dos dedos; as têmporas latejavam; a respiração saía assobiada das narinas rígidas. Para piorar, as unhas compridas do morto cortavam-lhe os flancos, e Grettir as sentia como facas cravadas entre suas costelas. Suas mãos cederam, inevitavelmente, e o monstro, cambaleando, levou-o até o pórtico, indo chocar-se contra os fragmentos da porta. Difícil que fosse enfrentá-lo ali dentro, Grettir sabia que, ao ar livre, seria pior, de modo que juntou toda a força que lhe restava em um último e desesperado esforço.

A porta era reforçada por uma tranca que se inseria em uma cavidade; essa cavidade fora perfurada na pedra que constituía uma das jambas; do lado oposto, um bloco semelhante recebia as dobradiças. No que os combatentes se aproximaram do vão, Grettir apoiou os pés nesses blocos de pedra, segurando Glámr pela cintura. Estava em vantagem agora. O morto se contorcia em seus braços, cravava em suas costas as garras, rasgando-lhe fundo a carne, mas as ombreiras de pedra mantinham-se firmes.

“Agora”, pensou Grettir, “posso quebrar-lhe as costas”, e, enfiando a cabeça por baixo do queixo do morto, os olhos encobertos pela barba cinzenta, empurrou com toda a força, fazendo as costas vergarem como vara de aveleira.

“Só mais um pouco.” Tentou chamar por Thorhall, mas os cabelos do defunto abafaram-lhe a voz.

De repente, uma das ombreiras cedeu, talvez as duas. Toda a estrutura do oitão veio abaixo, arrancando vigas e esteios do lugar; torrões congelados despencaram do telhado sobre a neve. Glámr caiu de costas e Grettir, por cima dele. A lua estava cheia; encoberta por grandes nuvens brancas que pareciam brincar de pega, olhava através delas envolta por um halo marrom. O pico nevado de Jörundarfell, todavia, alumiou como um planeta, e toda a branca serrania se acendeu, a luz deslizou pela encosta, o disco prateado despiu-se dos véus e derramou seu clarão em cheio no rosto do vampiro. Grettir sentiu sua força abandoná-lo, suas mãos tremiam na neve e ficou evidente que não conseguiria evitar o estatelamento contra o rosto do morto, olho no olho, lábio no lábio. Os olhos do cadáver, fixos nele, refletiam o luar gélido. Sua cabeça girava com o calor que fluía do coração para o cérebro. Então, proferiram os lábios cinzentos:

— Foste imprudente, querendo medir-te comigo. Saiba que, de hoje em diante, aonde fores, má sorte seguirá; tua força estará limitada ao que é agora; e, à noite, e até o dia de tua morte, teus olhos encontrarão os meus na escuridão, de modo que, tomado de horror, não suportarás ficar só.

Nesse momento, Grettir percebeu que, durante a queda, seu punhal havia escorregado da bainha, estando agora convenientemente ao alcance da mão. Livre da vertigem que o assaltara, agarrou o punho da arma e abriu de um golpe a garganta do vampiro. Em seguida, ajoelhando-se sobre seu peito, aplicou força até completar a degola.

Eis que Thorhall apareceu, o rosto lívido de terror; porém, ao descobrir do prélio o desfecho, prontamente ajudou Grettir a rolar o cadáver até uma pilha de gravetos provisionada para o inverno. Puseram fogo e não tardou para que, longe, descendo o vale, as chamas da pira chamassem atenção de toda a gente, que se indagava que novo horror estaria sendo encenado na parte superior do vale das Sombras.

No dia seguinte, os ossos carbonizados foram levados para um lugar remoto, longe de áreas habitadas, e enterrados.

As palavras de Glámr provaram-se verdadeiras. Nunca mais Grettir ousou ficar sozinho depois de escurecer.


Tradução: Rodrigo R. Carmo

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