O álbum do cônego Alberic, de M. R. James

Saint-Bertrand-de-Comminges é um vilarejo decadente nos contrafortes dos Pireneus, não muito longe de Toulouse e ainda mais próximo de Bagnères-de-Luchon. Sede de um bispado até a Revolução, conservava uma catedral visitada por boa quantidade de turistas. Na primavera de 1883, um inglês chegou a esse local arcaico – que mal se pode chamar de cidade, pois não tem nem mil habitantes. Viera de Cambridge especialmente para ver a igreja de são Bertrand e deixara dois amigos (menos propensos que ele à arqueologia) no hotel em Toulouse sob promessa de se encontrarem no dia seguinte. Meia hora na igreja bastaria para eles e os três poderiam, então, seguir caminho rumo a Auch. Mas nosso inglês havia chegado cedo no dia em questão e propusera a si mesmo encher um caderno e usar várias chapas no processo de descrever e fotografar cada canto da maravilhosa igreja que domina a pequena colina de Comminges. A fim de levar tal desígnio a cabo de modo satisfatório, seria necessário monopolizar o sacristão por um dia. Assim sendo, mandou chamá-lo a senhora um tanto rude que administra o albergue do Chapeau Rouge; e quando chegou, o inglês encontrou nele um inesperado e interessante objeto de estudo. Não era a aparência pessoal do pequeno, seco, encarquilhado ancião que despertava o interesse, pois era exatamente igual a dúzias de outros guardiões de igreja na França, mas o ar curiosamente furtivo, mesmo assustado, e oprimido que tinha. Estava sempre olhando de esguelha por sobre o ombro; os músculos das costas e dos ombros pareciam permanentemente arqueados por uma contração nervosa, como se estivesse à espera de, a qualquer momento, ver-se nas garras de um inimigo. As opiniões do inglês variavam entre assombrado por uma ideia fixa, oprimido por uma consciência culpada ou acabrunhado por um cônjuge implacável. As probabilidades, tudo em conta, apontavam certamente para esta última ideia; a impressão que se tinha, no entanto, era a de um perseguidor mais formidável do que uma esposa megera.

De todo modo, o inglês (chamemo-lo Dennistoun) logo estava absorto demais em seu caderninho e ocupado demais com sua câmera para dirigir mais que um olhar ocasional ao sacristão. Mas sempre que olhava, achava-o não muito distante, encostado a uma parede ou encolhido junto a uma das magníficas estalas. Dennistoun foi ficando impaciente. Suposições de que estava privando o velho de seu déjeuner, de que era suspeito de querer subtrair o báculo de marfim de são Bertrand ou o empoeirado crocodilo empalhado pendurado sobre a fonte começaram a incomodá-lo.

— Não quer ir para casa? — disse finalmente. — Posso perfeitamente terminar minhas observações sozinho; pode trancar a porta se quiser. Precisarei de pelo menos duas horas mais aqui, e deve estar frio para você, não é?

— Bom Deus! — disse o homenzinho, a quem a sugestão pareceu lançar num inexplicável estado de terror. — Nem pense numa coisa dessa. Deixar monsieur sozinho na igreja? Não, não; duas horas, três horas, para mim dá na mesma. Já tomei café, não estou com frio, agradeço muito a monsieur.

“Muito bem, meu velho,” pensou Dennistoun, “você foi avisado; agora, arque com as consequências.”

Antes do término das duas horas, as estalas, o enorme órgão dilapidado, o arco de cruzeiro do bispo John de Mauléon, os vestígios de vidro e tapeçaria e os objetos na câmara do tesouro tinham sido minuciosamente inspecionados; o sacristão seguia nos calcanhares de Dennistoun e, vez por outra, se virava repentinamente, como se sentisse uma picada, quando chegavam a seus ouvidos alguns dos estranhos ruídos que perturbam um grande edifício vazio. Ruídos, às vezes, bastante curiosos.

— Certa vez — disse-me Dennistoun —, poderia jurar que ouvi uma fina voz metálica rindo no alto da torre. Lancei um olhar interrogativo a meu sacristão. Estava pálido até os lábios. “É o… isto é… não é ninguém; a porta está trancada”, foi só o que disse, e nos encaramos por quase um minuto.

Outro pequeno incidente deixou Dennistoun bastante intrigado. Estava examinando um grande quadro escuro pendurado atrás do altar, parte de uma série que ilustra os milagres de são Bertrand. A composição da imagem é quase indecifrável, mas abaixo há uma legenda em latim que diz:

Qualiter S. Bertrandus liberavit hominem quem diabolus diu volebat strangulare (Como são Bertrand libertou um homem que o Diabo há muito tentava estrangular).

Dennistoun se voltou para o sacristão com um sorriso e um comentário jocoso na ponta da língua, mas ficou desconcertado ao ver o velho homem de joelhos, olhando a pintura como um suplicante em agonia, as mãos postas muito apertadas e um rio de lágrimas no rosto. Dennistoun fingiu não notar, mas a pergunta não saía de sua cabeça: “Por que um borrão desses afetaria tanto alguém?”. Pensou ter chegado a algum tipo de pista a respeito do estranho olhar que o incomodara o dia inteiro: o homem devia ser monomaníaco; mas qual seria sua monomania?

Eram quase cinco horas; o dia curto ia se esvaindo e a igreja começou a se encher de sombras, enquanto os estranhos sons – os passos abafados e as vozes distantes perceptíveis durante todo o dia – pareciam, sem dúvida por causa da luz declinante e do consequente apuro da audição, se tornar mais frequentes e insistentes.

O sacristão começou a dar os primeiros sinais de pressa e impaciência. Suspirou de alívio quando câmera e caderno foram finalmente embalados e guardados e indicou apressadamente a porta ocidental da igreja a Dennistoun, abaixo da torre. Estava na hora do Angelus. Alguns puxões na corda relutante e o grande sino de Bertrand, no alto da torre, começou a falar, e sua voz soou entre os pinhos e por sobre o vale, percutindo com os córregos da montanha, convocando os moradores daquelas solitárias colinas a lembrar e repetir a saudação do anjo àquela que foi chamada Bendita entre as mulheres. Com isso, uma profunda quietude pareceu cair sobre a pequena cidade pela primeira vez naquele dia. Dennistoun e o sacristão deixaram a igreja.

Na soleira, encetaram uma conversa.

Monsieur pareceu interessado nos velhos livros de cânticos na sacristia.

— Sem dúvida. Ia perguntar se existe uma biblioteca na cidade.

— Não, monsieur; pode ter existido alguma pertencente ao Capítulo, mas agora é um lugar tão pequeno…

Houve uma estranha pausa de indecisão, ao que pareceu; então, como que num repente, ele prosseguiu:

— Mas se monsieur é amateur des vieux livres, tenho em casa algo que pode interessá-lo. É aqui perto.

Subitamente, todos os sonhos de Dennistoun, de encontrar manuscritos inestimáveis em cantos inexplorados da França, se iluminaram, mas rapidamente tornaram a se apagar. Era provavelmente um estúpido missal impresso por Plantin, c. 1580. Qual era a probabilidade de um local tão próximo a Toulouse não ter sido ainda saqueado por colecionadores? De qualquer forma, seria besteira não ir; se arrependeria para todo o sempre se não fosse. Foram. No caminho, a curiosa indecisão e a repentina determinação do velho voltaram à mente de Dennistoun e ele se perguntou, envergonhado, se não estaria sendo conduzido a algum arrabalde para, tomado como um inglês rico, “desaparecer”. Resolveu, então, retomar a conversa com seu guia e mencionou, de forma um tanto desajeitada, que aguardava dois amigos para o dia seguinte. Para sua surpresa, a notícia pareceu aliviar um pouco o sacristão.

— Isso é bom — disse ele vivamente —, isso é muito bom. Monsieur viajará em companhia de seus amigos: estarão sempre por perto. É bom viajar assim, acompanhado… às vezes.

As últimas palavras tinham um quê de ressalva e pareciam trazer consigo um recaimento na melancolia para o pobre homenzinho.

Chegaram rapidamente à casa, que era consideravelmente maior que as vizinhas, toda de pedra, com um escudo entalhado na porta, o escudo de Alberic de Mauléon, um descendente colateral, disse-me Dennistoun, do bispo John de Mauléon. Esse Alberic foi cônego de Comminges entre 1680 e 1701. As janelas superiores da mansão estavam fechadas com tábuas e o lugar tinha, como tudo em Comminges, um aspecto de deteriorada antiguidade.

Na soleira, o sacristão teve um momento de hesitação.

— Talvez — disse —, talvez, afinal, monsieur não tenha tempo?

— Absolutamente; todo o tempo; nada a fazer até amanhã. Vejamos o que tem.

A porta se abriu nesse exato momento e um rosto apareceu, um rosto bem mais jovem que o do sacristão, mas com o mesmo olhar inquietante: aqui, no entanto, parecia sinalizar, mais do que receio pela segurança pessoal, profunda aflição por outrem. A dona do rosto era obviamente filha do sacristão; e, a não ser pela expressão já descrita, era uma moça bem atraente. Ficou bastante aliviada ao ver o pai em companhia de um estranho de boa compleição. Pai e filha trocaram alguns comentários, dos quais Dennistoun só pegou estas palavras, ditas pelo sacristão:

— Ele estava rindo na igreja — palavras respondidas por um olhar aterrorizado da garota.

Mais um minuto e estavam na sala de estar da casa, um cômodo pequeno e alto com chão de pedra, cheio de sombras animadas pelo fogo que tremeluzia em uma grande lareira. Tinha certa aparência de oratório, conferida por um grande crucifixo que chegava quase ao teto; a imagem tinha cores naturais, a cruz era preta. Abaixo do crucifixo, junto à parede, havia um baú de óbvia idade e solidez; depois de trazer uma lâmpada e algumas cadeiras, o sacristão foi até o baú e dele retirou, com crescente excitação e nervosismo, segundo pareceu a Dennistoun, um grande livro embrulhado em tecido branco, no qual uma grande cruz fora rudemente bordada com linha vermelha. Mesmo antes de ser desembrulhado, Dennistoun começou a se interessar pelo tamanho e formato do livro. “Grande demais para um missal”, pensou, “e de formato estranho para um antifonário; talvez seja coisa boa, afinal.” Assim que o volume foi aberto, Dennistoun sentiu que finalmente dera com algo melhor do que bom. Diante dele estava um grande fólio encadernado, talvez, em fins do século XVII e com as armas do cônego Alberic de Mauléon em ouro nas laterais. Devia haver umas 150 folhas de papel no livro e em quase todas fora presa uma página de manuscrito iluminado. Uma coleção com a qual Dennistoun não teria sonhado em seus momentos mais delirantes. Ali estavam dez folhas de uma cópia ilustrada do Gênese que não podia ser posterior a 700 d.C. Mais adiante, havia um conjunto completo de imagens de um saltério de procedência inglesa do melhor tipo que o século XIII podia produzir; e, talvez o melhor de tudo, vinte folhas de escrita uncial em latim, como denunciavam imediatamente algumas palavras aqui e ali, que deviam pertencer a algum desconhecido tratado patrístico primitivo. Seria um fragmento das “Interpretações dos Provérbios do Senhor”, de Papias, cuja cópia teria existido em Nîmes pelo menos até o século XII?1 Em todo caso, estava decidido; aquele livro tinha de retornar com ele a Cambridge, mesmo que tivesse de sacar todo o seu saldo bancário e permanecer em St. Bertrand até o dinheiro chegar. Olhou para o sacristão a fim de conferir se seu rosto denunciava qualquer sugestão de que o livro estivesse à venda. O sacristão estava pálido e mexia os lábios.

— Se monsieur quiser ir até o fim — disse.

Então monsieur prosseguiu, descobrindo novos tesouros a cada página virada; e, no final do livro, encontrou duas folhas de papel bem mais recentes que o resto, o que o deixou bastante intrigado. Deviam ser contemporâneas, concluiu, do inescrupuloso cônego Alberic, que, sem dúvida, saqueara a biblioteca do Capítulo de St. Bertrand para compor esse inestimável álbum de recortes. A primeira folha continha uma planta, cuidadosamente desenhada e instantaneamente identificável por alguém que conhecesse a área, da nave sul e dos claustros de St. Bertrand. Havia signos estranhos que pareciam símbolos planetários e algumas palavras em hebraico nos cantos; e, no ângulo noroeste do claustro, uma cruz em tinta dourada. Abaixo da planta, algumas linhas de escrita em latim diziam o seguinte:

Responsa 12(mi) Dec. 1694. Interrogatum est: Inveniamne? Responsum est: Invenies. Fiamne dives? Fies. Vivamne invidendus? Vives. Moriarne in lecto meo? Ita. (Respostas de 12 dez. 1694. Foi perguntado: Encontrarei? Resposta: Encontrarás. Ficarei rico? Ficarás. Serei objeto de inveja? Serás. Morrerei em minha cama? Morrerás.)

— Um bom espécime do registro do caçador de tesouros; lembra bastante o do cônego menor Quatremain em Old St. Paul’s — comentou Dennistoun, virando a folha.

O que viu a seguir o impressionou, como afirmaria em diversas ocasiões, mais do que teria julgado possível a um desenho ou figura. E embora o desenho que ele viu não exista mais, há uma fotografia dele (em minha posse) que corrobora inteiramente tal afirmação. A imagem em questão era um desenho à sépia de final do século XVII representando, dir-se-ia à primeira vista, uma cena bíblica; pois a arquitetura (a imagem mostrava um interior) e as figuras tinham aquele ar semiclássico que os artistas de duzentos anos atrás achavam apropriado para ilustrações da Bíblia. À direita, sentado em um trono erguido sobre doze degraus e encimado por um dossel, com soldados de ambos os lados, havia um rei – evidentemente o rei Salomão. Estava inclinado para frente, cetro estendido em atitude de comando; seu rosto expressava horror e aversão, mas havia nele, ao mesmo tempo, a marca de imperiosa autoridade e poder confiante. O lado esquerdo da imagem era o mais estranho, contudo. O interesse estava claramente ali.

No pavimento diante do trono, quatro soldados cercavam uma figura agachada que será descrita em breve. Um quinto soldado estava morto no chão, seu pescoço torcido e os globos oculares saltando da cabeça. Os quatro guardas olhavam para o rei. Em seus rostos, o sentimento de horror era maior ainda; de fato, a única coisa que parecia impedi-los de fugir era a confiança implícita em seu mestre. Todo esse terror era obviamente causado pela criatura agachada.

É impossível descrever a impressão causada pela figura naqueles que a veem. Lembro de ter mostrado a fotografia do desenho a um professor de morfologia – uma pessoa, eu diria, de hábitos mentais saudáveis e pouco imaginativos. Ele se recusou terminantemente a ficar sozinho durante o resto da noite e me disse depois que, por muito tempo, não ousou apagar a luz antes de dormir. Entretanto, os traços principais da figura, ao menos, eu posso indicar.

A princípio, via-se apenas um emaranhado de cabelos negros e ásperos; em seguida, percebia-se que essa massa cobria um corpo de magreza assustadora, quase um esqueleto, mas com músculos tesos como fios de arame. As mãos eram de uma palidez pardacenta, cobertas, como o corpo, por pelame longo e áspero, e formavam garras terríveis. Os olhos, tingidos de um amarelo incandescente, tinham pupilas de um preto intenso e estavam fixos no rei entronado, aparentando ódio bestial. Imagine uma das terríveis aranhas caranguejeiras sul-americanas em forma humana e dotada de inteligência levemente sub-humana e terá uma vaga ideia do terror inspirado pela apavorante efígie. Um comentário comum a todos a quem mostrei a imagem é: — Foi desenhado de um modelo-vivo.

Passado o choque inicial desse irresistível terror, Dennistoun deu uma olhada em seus anfitriões. O sacristão cobria os olhos com as mãos; sua filha, encarando a cruz na parede, rezava o terço fervorosamente.

Finalmente, a pergunta:

— Este livro está à venda?

Houve a mesma hesitação, o mesmo repente de determinação que ele havia notado antes, seguidos da agradável resposta:

— Se for do gosto de monsieur.

— Quanto quer por ele?

— Aceitarei 250 francos.

Era absurdo. Mesmo a consciência de um colecionador, vez ou outra, dá sinais de vida, e a de Dennistoun era mais gentil que a de um colecionador.

— Meu bom homem! — disse uma e outra vez. — Seu livro vale muito mais do que 250 francos. Eu lhe asseguro, muito mais.

Mas a resposta não mudou:

— Aceitarei 250 francos; não mais.

Realmente não havia possibilidade de recusar uma chance como essa. O valor foi pago; o recibo, assinado; beberam uma taça de vinho para comemorar a transação. Depois disso, o sacristão pareceu outro homem. Endireitou o corpo, parou de olhar suspeitosamente por sobre o ombro, chegou a rir ou tentar rir. Dennistoun levantou para sair.

— Permita-me a honra de acompanhar monsieur até o hotel — disse o sacristão.

— Oh, não, obrigado! É aqui perto. Conheço perfeitamente o caminho e a noite está clara.

A oferta foi refeita três ou quatro vezes e tantas vezes recusada.

— Então, monsieur me chamará se… se for necessário; siga pelo meio da rua, as laterais são muito acidentadas.

— Certamente, certamente — disse Dennistoun, que estava impaciente para examinar seu prêmio a sós; e tomou o corredor com o livro embaixo do braço.

Aqui encontrou a filha; ela, ao que parecia, estava ansiosa para tratar de seus próprios negócios; talvez, como Gehazi, “tirar alguma coisa” do forasteiro a quem seu pai poupara.

— Um crucifixo de prata e corrente para o pescoço; monsieur faria a gentileza de aceitar?

Ora, realmente, Dennistoun não tinha muito uso para aquelas coisas. O que mademoiselle queria por elas?

— Nada; nada, de modo algum. É de bom grado, monsieur.

O tom com que isso e muito mais foi dito era inequivocamente sincero, de modo que Dennistoun não teve alternativa senão agradecer e permitir que se pusesse o crucifixo em seu pescoço. Parecia mesmo que havia prestado a pai e filha um favor que mal sabiam como retribuir. Quando saiu com o livro, ficaram à porta, tomando conta, e ainda estavam lá quando lhes acenou um último boa-noite desde os degraus do Chapeau Rouge.

Terminado o jantar, Dennistoun estava em seu quarto, trancado sozinho com sua aquisição. A proprietária havia manifestado particular interesse desde que lhe dissera que havia feito uma visita ao sacristão e que comprara dele um livro antigo. Pensou, também, ter ouvido uma conversa apressada entre ela e o dito sacristão no corredor que dava para a salle à manger; algumas palavras no sentido de que “Pierre e Bertrand dormiriam na casa” encerraram a conversa.

Todo esse tempo, um desconforto crescente estivera se apoderando dele – reação nervosa, talvez, após o prazer de sua descoberta. O que quer que fosse, resultou na convicção de que havia alguém atrás dele e de que ele se sentia muito mais confortável de costas para a parede. Tudo isso, é claro, pesava pouco na balança comparado ao óbvio valor da coleção que havia adquirido. E agora, como eu disse, ele estava só em seu quarto, avaliando os tesouros do cônego Alberic, que, a cada minuto, revelavam algo mais encantador.

— Bendito cônego Alberic! — disse Dennistoun, que tinha o inveterado hábito de falar sozinho. — Onde estará agora? Minha nossa! Bem que a proprietária podia aprender a rir de modo mais agradável; parece até que tem alguém morto na casa. Meio cachimbo mais, você diz? Creio que possa estar certo. Que crucifixo é esse que a jovem insistiu em me dar? Século passado, suponho. Sim, provavelmente. Coisinha desagradável para usar no pescoço; muito pesado. Seu pai deve tê-lo usado durante anos. Acho melhor limpá-lo antes de guardar.

Havia tirado o crucifixo e o colocado sobre a mesa quando chamou sua atenção um objeto pousado no pano vermelho próximo a seu cotovelo esquerdo. Duas ou três ideias sobre o que poderia ser cruzaram sua mente em velocidade incalculável.

Um mata-borrão? Não, não creio que haja na casa. Um rato? Não, muito preto. Uma aranha enorme? Queira Deus que não – não. Bom Deus! Uma garra, uma garra como a do desenho!

Noutro lampejo infinitesimal, percebeu tudo. Pele pálida e pardacenta, cobrindo nada além de ossos e tendões de força apavorante; pelame preto e áspero, mais longo do que jamais cresceu em mãos humanas; unhas que saíam das pontas dos dedos e se curvavam de forma abrupta para baixo e para frente, cinzentas, córneas e rugosas.

Voou da cadeira onde estava com mortal, inconcebível terror apertando-lhe o coração. O vulto, cuja mão esquerda estava sobre a mesa, erguia-se atrás de sua cadeira, a mão direita arqueada sobre a cabeça de Dennistoun. Dela pendiam trapos encardidos; era coberta de pelo áspero, como no desenho. A mandíbula era delgada – como posso dizer? – rasa, como a de uma fera; os dentes eram visíveis por trás dos lábios escuros; não tinha nariz; os olhos, de um amarelo vívido, emolduravam as pupilas negras e intensas, e o ódio exultante e a sede de destruição que brilhavam nelas eram o traço mais apavorante em toda a visão. Havia alguma inteligência neles – maior que a de uma fera, menor que a de um homem.

Os sentimentos que esse horror incitaram em Dennistoun foram o mais intenso medo físico e a mais profunda aversão mental. O que ele fez? O que podia fazer? Jamais conseguiu se lembrar das exatas palavras que proferiu, mas sabe que falou, que agarrou cegamente o crucifixo de prata, que percebeu o avanço do demônio em sua direção e que gritou como um animal em lancinante agonia.

Pierre e Bertrand, os dois pequenos e robustos empregados que o acudiram, não viram nada, mas sentiram-se empurrados por alguma coisa que passou entre eles. Dennistoun estava desmaiado quando o encontraram. Permaneceram com ele aquela noite e seus dois amigos chegaram a St. Bertrand às nove horas do dia seguinte. Ele mesmo, embora ainda abalado e nervoso, havia se recomposto quase totalmente àquela altura, e sua história mereceu crédito – ao menos depois de verem o desenho e falarem com o sacristão.

Quase ao amanhecer, o homenzinho havia chegado à pensão sob um pretexto qualquer e ouvira com profundo interesse a história relatada pela proprietária. Não se mostrou surpreso.

— É ele; é ele! Eu mesmo o vi — foi seu único comentário; e, para todas as perguntas, concedeu uma única resposta: — Deux fois je l’ai vu: mille fois je l’ai senti.

Nada contou sobre a procedência do livro, nem deu detalhes de suas experiências.

— Logo dormirei e meu descanso será doce. Por que me perturbam? — falou.2

Nunca saberemos o que sofreu ou o que sofreu o cônego Alberic de Mauléon. Umas poucas linhas encontradas no verso daquele fatídico desenho podem, talvez, lançar alguma luz sobre o caso:

Contradictio Salomonis cum demonio nocturno.
Albericus de Mauléone delineavit.
V. Deus in adiutorium. Ps. Qui habitat.
Sancte Bertrande, demoniorum effugator, intercede pro me miserrimo.
Primum uidi nocte 12(mi) Dec. 1694: uidebo mox
ultimum. Peccaui et passus sum, plura adhuc
passurus. Dec. 29, 1701.
3

Nunca ficou clara para mim a opinião de Dennistoun sobre os eventos que acabo de narrar. Certa vez, citou uma passagem de Eclesiástico:

— Há espíritos que foram criados para a vingança: aumentaram seus tormentos pelo seu furor.

Noutra ocasião, disse:

— Isaías era um homem sensível; ele não disse alguma coisa a respeito de monstros noturnos vivendo nas ruínas da Babilônia? Essas coisas estão fora de nosso alcance atualmente.

Outra confidência sua me deixou bastante impressionado e ganhou minha simpatia. Estivemos, ano passado, em Comminges em visita ao túmulo do cônego Alberic. É uma grande estrutura de mármore com uma efígie do cônego de peruca e sotaina, abaixo da qual há uma elaborada elegia de sua erudição. Vi Dennistoun conversando com o vigário de St. Bertrand e, ao partirmos, ele disse:

— Espero que não seja errado: você sabe que sou presbiteriano… mas eu… creio que haverá “missa e cânticos” pela alma de Alberic de Mauléon.

Em seguida, emendou, com um toque nortista:

— Não sabia que saía tão caro.

* * * * *

O livro está na Coleção Wentworth, em Cambridge. O desenho foi fotografado e, em seguida, incinerado por Dennistoun no dia em que deixou Comminges por ocasião de sua primeira visita.


1 Sabemos agora que as folhas contêm um fragmento considerável dessa obra, se não da exata cópia mencionada. [Voltar]

2 Ele morreu no verão seguinte; sua filha se casou e foi morar em St. Papoul. Ela nunca compreendeu as circunstâncias da “obsessão” de seu pai. [Voltar]

3 “A Disputa de Salomão com um demônio noturno. Desenho de Alberic de Mauléon. Versículo. Salva-me, ó Deus. Salmo. Aquele que habita [xci]. São Bertrand, que punha em fuga os demônios, orai por mim, sofredor. Vi-o pela primeira vez na noite de 12 dez. 1694; logo o verei pela última vez. Eu pequei e sofri, e tenho ainda mais a sofrer. 29 dez. 1701.”
A Gallia Christiana data a morte do cônego em 31 de dezembro de 1701, “acamado, de um mal súbito”. Detalhes desse tipo não são comuns na grande obra de Sainte-Marthe. [Voltar]


Tradução: Rodrigo R. Carmo

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