O lago, de Hugh Walpole

Enquanto Foster andava distraidamente pela sala, debruçando-se sobre a estante e escolhendo com os olhos ora um livro, depois outro, seu anfitrião, vendo se retesarem os músculos posteriores do fino, esquálido pescoço por sobre a gola baixa de flanela, pensava em como seria fácil torcer aquele pescoço, e na satisfação, a triunfante, luxuriante satisfação que isso o traria.

O cômodo pequeno, de paredes e teto branco, era banhado pelo sol brando e gentil de Lakeland. O mês de outubro é maravilhoso nos lagos ingleses, dourado, rico e perfumado, lentos sóis percorrendo céus de damasco rumo a gloriosos crepúsculos de rubi; depois, sombras densas recaindo sobre a bela paisagem em escuros pensos violáceos, em longos padrões rendados de gaze prateada, em grossos borrões de âmbar e cinza. As nuvens, como galeões, navegam em meio às montanhas, ora escondendo, ora revelando, ora baixando como exércitos espectrais até o próprio seio da campina, erguendo-se subitamente para o mais que suave azul do céu e esfiando-se em cores languidamente preguiçosas.

O chalé de Fenwick encarava Low Fells; à direita, vistos pelas janelas laterais, estendiam-se os morros acima de Ullswater.

Fenwick olhou as costas de Foster e se sentiu subitamente enjoado. Sentou-se e cobriu os olhos com a mão. Foster fora até lá, percorrera toda a distância desde Londres, para se explicar. Era tão típico de Foster querer se explicar, querer esclarecer as coisas. Há quantos anos se conheciam? Ora, vinte anos, no mínimo, e durante todos aqueles anos, Foster sempre estivera determinado a esclarecer tudo com todos. Não suportava ser desgostado; odiava que pensassem mal dele; queria ser amigo de todo mundo. Esse, talvez, fosse um dos motivos por que Foster se dera tão bem, prosperara tanto em sua carreira; um dos motivos, também, por que o mesmo não ocorrera com Fenwick.

Pois nisso Fenwick era o oposto de Foster. Não queria amigos, pouco lhe importava que as pessoas gostassem dele – isto é, pessoas que, por uma razão ou outra, ele desprezasse – e não eram poucas.

Fenwick olhou aquelas costas longas, magras, encurvadas e sentiu os joelhos tremerem. Foster logo se voltaria, e aquela voz aguda, estridente pipilaria alguma coisa sobre os livros. “Que belos livros você tem aqui, Fenwick!” Quantas e quantas vezes, nas longas noites de insônia, havia Fenwick ouvido aqueles sons flautados de perto, tão perto – sim, nas próprias sombras de sua cama! E quantas vezes respondera: “Eu te odeio! Você é a causa de meus infortúnios! Você, sempre no meu caminho. Sempre, sempre, sempre! Condescendente e fingido, sempre mostrando aos outros o pouco que pensa de mim, o grande fracassado, o tolo presunçoso! Eu sei. Não há nada que você possa me esconder! Posso ouvi-lo!”.

Há vinte anos Foster se metia persistentemente no caminho de Fenwick. Houve aquela vez, há tanto tempo agora, quando Robins buscava um subeditor para seu extraordinário periódico, o Parthenon, e Fenwick o procurou e eles tiveram uma conversa esplêndida. Quão magnificamente falara Fenwick aquele dia; com que entusiasmo mostrara a Robins (cego por sua própria vaidade, aliás) o tipo de jornal que poderia ser o Parthenon; como Robins fora contagiado por seu próprio entusiasmo, como arrastara o corpanzil pela sala, vociferando: “Sim, sim, Fenwick – isso é ótimo! Ótimo mesmo!” – e como, no final, Foster ficara com o trabalho.

O jornal não durou mais que um ano, mas sua ligação com ele deu notoriedade a Foster, como bem poderia ter dado a Fenwick!

Então, passados cinco anos, Fenwick publicou seu romance, Babosa amarga – ao qual dedicara três anos de lágrimas e sangue; e na mesma semana Foster lançou O circo, romance que o tornou famoso – embora, sabe Deus, fosse puro lixo sentimental. Dirá você que um livro não pode matar outro – será que não? Não fosse O circo, não teriam os sabe-tudo de Londres – aquele bando de presunçosos, limitados, ignorantes, complacentes que, não obstante, tem tanta influência sobre a boa ou má sorte de um livro – falado a respeito de Babosa amarga, levando-o ao sucesso? O livro nasceu morto, enquanto O circo seguiu seu caminho feliz e triunfante.

Depois disso, foram várias ocasiões – algumas pequenas, outras grandes –, e sempre, de um jeito ou de outro, aquele corpo fino, esquálido de Foster interferindo na felicidade de Fenwick.

A coisa se tornara, é claro, uma obsessão para Fenwick. Escondido ali, no coração dos Lagos, sem amigos, quase sem companhia, e bem pouco dinheiro, havia muito tempo para meditar sobre seu fracasso. Era um fracasso e a culpa não era sua. Como poderia ser, com todo seu talento e brilhantismo? Era culpa da modernidade e sua falta de cultura, culpa da estúpida barafunda material que compunha a inteligência humana – e culpa de Foster.

Fenwick sempre esperou que Foster ficasse longe. Não sabia qual não seria sua reação se encontrasse o homem. Então, certo dia, para sua surpresa, recebeu um telegrama:

“Passando aí perto. Poderia me receber segunda e terça-feira? – Giles Foster.”

Fenwick mal podia crer em seus olhos, e então – por curiosidade, por cínico desprezo, por alguma razão mais profunda e misteriosa que não ousava analisar – telegrafou de volta: “Venha”.

E aqui estava ele. E viera – dá para acreditar? – para “esclarecer as coisas”. Escutara de Hamlin Eddis que Fenwick estava magoado com ele, que se sentia injuriado.

— Não gostei de ouvir isso, meu velho, então pensei em vir aqui para conversar, descobrir o problema e esclarecer as coisas.

Na noite anterior, após o jantar, Foster tentara esclarecer as coisas. Ansioso, olhos de um cão obediente que espera pelo osso que sabe que fez por merecer, estendeu a mão e pediu a Fenwick que “dissesse qual era o problema”.

Fenwick respondeu simplesmente que não havia problema algum; Hamlin Eddis era um maldito idiota.

— Ah, que bom ouvir isso! — exclamou Foster, saltando da cadeira e posando a mão no ombro de Fenwick. — Fico feliz com isso, meu velho. Não suporto a ideia de não continuarmos amigos. Somos amigos há tanto tempo.

Deus! Como Fenwick o odiou naquele momento!

II

— Que belos livros você tem aqui! — Foster se virou e olhou para Fenwick com olhos ansiosos, satisfeitos. — Todos são muito interessantes! Também gostei da forma como os organizou, e essas estantes abertas; sempre me pareceu um pecado confinar livros atrás de portas de vidro!

Foster se aproximou e sentou bem perto de seu anfitrião. Mais ainda, se inclinou e pôs a mão no joelho de Fenwick.

— Veja! É a última vez que toco no assunto – prometo! Mas não quero deixar nenhuma dúvida. Não há nenhum problema entre nós, não é, meu velho? Sei que me garantiu noite passada, mas eu só…

Fenwick olhou para ele e, avaliando-o, deleitou-se de tanto ódio. Gostava de sentir a mão dele em seu joelho; inclinou-se também um pouco e, imaginando como seria agradável vazar os olhos de Foster, afundá-los mais e mais em sua cabeça, triturá-los, esmagá-los, deixando apenas as órbitas vazias, arregaladas, sangrentas, disse:

— Ora, não. É claro que não. Eu te disse ontem. O que poderia haver?

A mão apertou um pouco mais o joelho.

— Fico tão feliz com isso! É esplêndido! Esplêndido! Espero que não me ache ridículo, mas, tanto quanto me lembro, sempre tive grande afeição por você. Sempre quis conhecê-lo melhor. Sou um grande admirador de seu talento. Aquele seu romance… o… o… aquele sobre a babosa…

Babosa amarga?

— Sim, esse mesmo. Que livro esplêndido. Pessimista, é claro, mas muito bom. Merecia melhor sorte. Lembro-me de tê-lo pensado à época.

— Sim, merecia melhor sorte.

— Sua hora virá, contudo. Quero dizer, o bom trabalho sempre acaba se destacando.

— Sim, minha hora virá.

A fina voz flautada prosseguiu:

— Agora, eu tive mais sucesso do que mereço. Oh, tive sim. Não se pode negar. Não é falsa modéstia. Falo sério. Eu tenho algum talento, é claro, mas não tanto quanto dizem. E você! Ora, você tem muito mais do que é reconhecido. Você tem, meu velho. Sério mesmo. Só; espero que me perdoe por dizê-lo; talvez você não tenha chegado tão longe quanto poderia. Vivendo aqui, afastado, escondido por essas montanhas, nesse clima úmido… sempre chovendo… ora, você está longe de tudo! Não vê gente, não conversa, não descobre o que está realmente acontecendo. Ora, olhe para mim!

Fenwick se virou e olhou para ele.

— Ora, eu passo metade do ano em Londres, onde se pode encontrar o melhor de tudo, melhor conversa, melhor música, melhores peças; depois passo três meses no continente, na Itália, na Grécia ou em outro lugar, e depois três meses no campo. Ora, esse é o arranjo ideal. Tem-se tudo dessa forma.

Itália, Grécia ou outro lugar!

Algo se agitou no peito de Fenwick, remoendo, remoendo, remoendo. Como desejara, ah, com que paixão, só uma semana na Grécia, dois dias na Sicília! Pensara algumas vezes em se atirar a isso, mas quando chegara o momento de contar os tostões… E agora esse idiota, esse pateta, esse complacente, pretensioso, condescendente…

Levantou-se, olhando para o sol lá fora.

— O que me diz de um passeio? — sugeriu. — Ainda temos pelo menos uma boa hora de sol.

III

Assim que as palavras deixaram seus lábios, sentiu como se outra pessoa as tivesse dito. Chegou mesmo a olhar discretamente para trás para ver se havia alguém lá. Desde a chegada de Foster, na tarde anterior, estivera ciente daquela sensação. Um passeio? Por que levaria Foster para passear, mostrar sua preciosa paisagem, apresentar aquelas curvas e retas e vãos, o amplo escudo prateado de Ullswater, as nevoentas e violáceas colinas arqueadas como cobertores sobre os joelhos de um gigante reclinado? Por quê? Era como se tivesse se voltado para alguém atrás de si e dito: “Você tem alguma outra coisa em mente”.

Partiram. A estrada mergulhava abruptamente em direção ao lago e continuava entre as árvores à beira d’água. Em toda a superfície do lago, tons de amarelo brilhante, cor de açafrão, se sobrepunham ao azul. Os morros estavam escuros.

A maneira como caminhava Foster lhe era bem adequada. Estava sempre um pouco à frente, projetando o corpo alto e magro com pequenos solavancos ansiosos, como se pudesse perder alguma coisa imensamente vantajosa se não se apressasse. Falava por sobre o ombro, atirando palavras para Fenwick como se fossem migalhas de pão para um tordo.

— Claro que fiquei feliz. Quem não ficaria? Afinal, é um prêmio novo. Tem apenas um ou dois anos, mas é gratificante, realmente gratificante recebê-lo. Quando abri o envelope e encontrei o cheque, bem, você não pode imaginar minha surpresa. Claro que cem libras não é muito. Mas a distinção…

Aonde estavam indo? Seu destino era tão certo que pareciam não ter livre-arbítrio. Livre-arbítrio? Não existe tal coisa. Tudo é Fatalidade. Fenwick riu, um riso alto e repentino.

Foster parou.

— Ora, o que foi?

— O que foi o quê?

— Você riu.

— Ocorreu-me algo divertido.

Foster tomou o braço de Fenwick.

É divertido caminharmos dessa forma, braços dados, amigos. Sou um homem sentimental. Não vou negar. O que digo é que a vida é curta e devemos amar nosso próximo, senão, onde estaremos? Você vive muito só, meu velho — e apertou o braço de Fenwick. — Essa é a verdade.

Era torturante, uma tortura soberba, celestial. Era maravilhoso sentir aquele braço fino, ossudo de encontro ao seu. Quase podia ouvir as batidas daquele outro coração. Maravilhoso sentir aquele braço e a tentação de tomá-lo em suas mãos e dobrá-lo e torcê-lo e ouvir os ossos quebrando… quebrando… quebrando… Maravilhoso sentir aquela tentação se espalhar pelo corpo como água fervendo e, contudo, não se entregar a ela. Por um instante, a mão de Fenwick tocou a de Foster. Em seguida, ele se afastou.

— Estamos na vila. Este é o hotel onde todos se hospedam no verão. Vamos dobrar à direita aqui. Vou lhe mostrar meu lago.

IV

— Seu lago? — perguntou Foster.

— Uma miniatura, uma piscina localizada no colo da montanha. Muito tranquilo, adorável, silencioso. Alguns são imensamente profundos.

— Gostaria de ver isso.

— É um pouco distante, por um caminho acidentado. Importa-se?

— Nem um pouco. Tenho pernas longas.

— Alguns são imensamente profundos, imperscrutáveis, ninguém jamais chegou ao fundo; mas tranquilos, como vidro, com sombras apenas…

— Sabe, Fenwick, sempre tive medo de água; nunca aprendi a nadar. Tenho medo de perder o pé. Não é ridículo? Mas tudo porque, anos atrás, na escola, quando era pequeno, alguns garotos maiores seguraram minha cabeça embaixo d’água e quase me afogaram. De fato, chegaram a fazê-lo. Foram mais longe do que pretendiam. Quase posso vê-los.

Fenwick ponderou a respeito. A imagem saltou-lhe à mente. Via os garotos, grandes e fortes, provavelmente, e essa coisinha magrela como um sapo, aos mãos pesadas ao redor de seu pescoço, as pernas se debatendo fora d’água como varetas cinzentas, suas risadas, a súbita impressão de que alguma coisa estava errada, o corpo magrelo flácido e imóvel…

Respirou fundo.

Foster andava a seu lado agora, não à sua frente, como se estivesse assustado e buscasse segurança. De fato, o cenário mudara. À frente e atrás deles se estendia a trilha da montanha, coberta de cascalho e pedras soltas. À direita, numa encosta ao pé do morro, quase desertas, havia algumas pedreiras, ainda mais melancólicas em função da pouca atividade restante nesse fim de tarde; sons abafados saíam das chaminés estreitas, um ribeiro corria e desaguava raivosamente numa cova abaixo, vez e outra uma silhueta escura, semelhante a um ponto de interrogação, surgia contra o fundo dos morros cada vez mais escuros.

Era um pouco íngreme aqui, e Foster bufava e ofegava.

Fenwick o odiou ainda mais por isso. Tão magro e supérfluo e ainda não conseguia se manter em forma! Tropeçavam, mantendo-se à sombra da pedreira, à margem do córrego, ora verde, ora um branco-acinzentado sujo, abrindo caminho pelo flanco da montanha.

Estavam agora de frente para Helvellyn. Circundava os morros, se aproximando na base e se espraiando para a direita.

— Lá está meu lago! — exclamou Fenwick; depois, acrescentou: — O sol não vai durar muito mais. Já está escurecendo.

Foster cambaleou e segurou o braço de Fenwick.

— Esse crepúsculo deixa os morros estranhos; parecem vivos. Mal posso enxergar o caminho.

— Estamos sozinhos aqui — respondeu Fenwick. — Sente a quietude? Os homens já terão deixado a pedreira a essa altura e ido para casa. Não há ninguém por perto a não ser nós dois. Se olhar com atenção, verá uma estranha luz esverdeada baixar sobre os morros. Não dura mais que um instante e, depois, escuridão.

— Ah, aqui está meu lago. Tem ideia de como amo este lugar, Foster? Parece especialmente meu, tanto quanto suas obras, sua glória, fama e seu sucesso parecem pertencer a você. Eu tenho isto e você tem aquilo. Talvez estejamos quites, afinal. Sim…

— Mas sinto como se aquele lago me pertencesse e eu pertencesse a ele, e como se não devêssemos nunca nos separar… Sim… Viu como a água é escura?

— Esse é dos profundos. Ninguém nunca mediu. Apenas Helvellyn sabe, e imagino que, um dia, ele me tomará também como confidente e sussurrará seus segredos…

Foster espirrou.

— Muito bom. Muito bonito, Fenwick. Gosto do seu lago. Encantador. Agora vamos voltar. O caminho até a pedreira é difícil. Está esfriando, também.

— Vê aquele pequeno píer ali? — Fenwick conduziu Foster pelo braço. — Alguém o construiu na água. Devia ter um barco, suponho. Venha olhar. Dali o lago parece muito fundo e as montanhas, muito próximas.

Fenwick tomou Foster pelo braço e o levou até a extremidade do píer. De fato, a água parecia profunda ali. Profunda e muito escura. Foster olhou para baixo, depois para cima, para os morros que pareciam realmente ter se fechado à sua volta. Espirrou novamente.

— Receio que tenha pego um resfriado. Vamos para casa, Fenwick, ou talvez não achemos o caminho.

— Para casa, então — disse Fenwick, e suas mãos se fecharam em torno do pescoço fino. Por um instante, a cabeça virou-se parcialmente e dois olhos assustados, estranhamente infantis o encararam; então, com um empurrão ridiculamente simples, o corpo arrojado, um grito cortante, a queda na água, algo branco se agitando contra o crepúsculo que se adensava rapidamente, outra vez e mais outra, as ondas se expandindo em círculos, silêncio.

V

O silêncio se estendeu. Após envolver o lago, espalhou-se, como que de dedo nos lábios, pelos morros já quiescentes. Fenwick compartilhava o silêncio. Deleitava-se nele. Não fez nenhum movimento. Ficou lá, olhando para a água escura do lago, braços cruzados, um homem perdido em pensamentos dos mais intensos. Mas ele não estava pensando. Sentia, apenas, um alívio cálido, luxuriante, uma volúpia que nada tinha de pensamento.

Foster se fora – aquele idiota tedioso, tagarela, presunçoso, complacente! E jamais voltaria. O lago o assegurava disso. Ele devolvia o olhar de Fenwick com aprovação, como se dissesse: “Você agiu bem – um serviço limpo e necessário. Agimos juntos, você e eu. Estou orgulhoso de você”.

Estava feliz consigo mesmo. Finalmente havia feito algo definitivo em sua vida. Pensamento ativo, ansioso começava a inundar seu cérebro. Quantos anos passara naquele lugar sem fazer nada senão alimentar ressentimentos, fraco, irresoluto – agora, ao menos, tomara uma atitude. Ergueu-se e olhou para os morros. Estava orgulhoso – e com frio. Tremendo. Levantou a gola do casaco. Sim, lá estava aquela débil luz esverdeada que sempre perdurava um instante nas sombras dos morros antes de escurecer. Estava ficando tarde. Melhor voltar.

Tremendo agora a ponto de bater os dentes, começou a descer a trilha, mas então se deu conta de que não queria deixar o lago. O lago era amigável – o único amigo que lhe restava no mundo. Enquanto cambaleava no escuro, crescia essa sensação de solidão. Estava voltando para uma casa vazia. Recebera um hóspede na noite anterior. Quem era mesmo? Ora, Foster, é claro – Foster com seu riso bobo e amigável, seus olhos medíocres. Bem, Foster já não estaria lá. Não, e jamais voltaria.

De repente, começou a correr. Não sabia por quê; apenas que, agora que deixara o lago, estava só. Queria permanecer lá a noite toda, mas não podia por causa do frio, e agora corria para chegar à casa, com as luzes e a mobília familiar – e todas as coisas que conhecia e que podiam consolá-lo.

Enquanto corria, seus pés espalhavam o cascalho e as pedras. Faziam clec-clec-clec sob ele, e parecia haver mais alguém correndo. Parou e o outro parou também. Respirou em silêncio. Estava com calor agora. O suor escorria pelas faces. Sentia uma gota descendo pelas costas, sob a camisa. Os joelhos latejavam. O coração esmurrava o peito. Ao redor, os morros estavam surpreendentemente quietos, parecendo agora nuvens de borracha (tão flexíveis quanto o mais expressivo dos rostos), cinzentos contra o roxo cristalino do céu noturno, em cuja superfície, como os olhos cintilantes de navios no mar, começavam a aparecer as estrelas.

Os joelhos firmaram, o coração já não batia tão feroz, e voltou a correr. De repente, após uma curva, viu-se no hotel. Suas luzes eram gentis e reconfortantes. Tomou a estrada do lago num passo tranquilo e, não fosse a certeza de que era seguido, teria se sentido calmo e relaxado. Parou uma ou duas vezes para olhar para trás; uma vez, parou e chamou: “Quem está aí?”. Respondeu apenas o farfalhar das árvores.

Imaginava absurdamente – mas seu cérebro latejava tanto que não conseguia pensar – que era o lago que o seguia, o lago escorrendo, derramando-se pela estrada, acompanhando-o para que não ficasse só. Quase podia ouvi-lo sussurrar em seu ouvido: “Fizemos aquilo juntos e não quero que assuma sozinho a responsabilidade. Ficarei com você para que não se sinta só”.

Subiu a estrada até a casa e lá estavam as luzes de seu lar. Ouviu o portão fechar atrás de si como se o estivesse aprisionando. Foi à sala de estar, arrumada e iluminada. Lá estavam os livros que Foster admirara.

A velhinha que cuidava da casa apareceu.

— Devo servir o chá, senhor?

— Não, Annie, obrigado.

— O outro cavalheiro não vai querer?

— Não; o outro cavalheiro passará a noite fora.

— Então, será apenas o senhor para o jantar?

— Sim, apenas eu para o jantar.

Sentou-se no canto do sofá e caiu imediatamente em um sono profundo.

VI

Acordou quando a velha senhora tocou seu ombro e lhe disse que o jantar estava servido. A sala estava escura, salvo pela luz bruxuleante de duas velas instáveis. Aqueles dois castiçais vermelhos – como os odiava lá, sobre a lareira! Sempre os odiara, e agora parecia haver neles algo da qualidade da voz de Foster – aquela voz fina, estridente, flautada.

Esperava que Foster entrasse a qualquer momento e, ao mesmo tempo, sabia que isso não aconteceria. Voltava insistentemente os olhos para a porta, mas estava tão escuro lá que nada se via. A sala inteira estava escura, exceto ali, junto à lareira, onde os dois castiçais seguiam derramando seu lamento tremelicante.

Foi para a sala de jantar e se sentou para a refeição. Mas não comeu nada. Era estranho – aquele lugar à mesa onde estaria a cadeira de Foster. Estranho, nu, sentia-se só com ele ali.

Levantou-se uma vez e foi até a janela, abriu e olhou para fora. Apurou os ouvidos, esperando escutar alguma coisa. Um barulho de água corrente, um distúrbio no silêncio, como se um tanque profundo estivesse a ponto de transbordar. Um movimento nas árvores, talvez. Uma coruja piou. Bruscamente, como se o tivessem surpreendido espiando, fechou a janela e olhou para trás, esquadrinhando a sala por sob as sobrancelhas escuras.

Mais tarde, foi para a cama.

VII

Estivera dormindo, ou apenas deitado preguiçosamente, meio cochilando, meio se dando o luxo de não pensar? Estava desperto agora, absolutamente desperto, e seu coração batia de apreensão. Era como se tivessem chamado seu nome. Dormia sempre com a janela um pouco aberta e a persiana levantada. Esta noite, o luar sobre os objetos no quarto projetava sombras doentias. Não era um jorro de luz, nem mesmo um foco bem definido, prateando um quadrado, um círculo, lançando o resto em trevas ebâneas. A luz era fraca, um pouco esverdeada, talvez, como a sombra que encobre os morros antes de escurecer.

Olhou para a janela e teve a impressão de que alguma coisa se movia. Misturado, ou melhor, contrastando com a luz cinza-esverdeada, algo prateado reluzia. Fenwick observava. Tinha a exata aparência de água escorrendo.

Água escorrendo! Ouviu atentamente, cabeça erguida, e pareceu-lhe que, vindo de fora, captava o barulho de água, não correndo, mas subindo e subindo, gorgolejando satisfeita enquanto se acumulava.

Sentou-se na cama e percebeu, sem sombra de dúvida, que água descia pelo papel de parede embaixo da janela. Viu-a se insinuar pelo parapeito saliente, parar, depois escorrer, deslizar pela superfície inclinada. O estranho era que não fazia barulho ao se derramar.

Aquele estranho gorgolejo continuava do lado de fora, mas, no aposento propriamente dito, o silêncio era absoluto. De onde viria? Viu a linha prateada subir e descer com o fluxo e refluxo da correnteza sobre o peitoril.

Tem de se levantar e fechar a janela. Afastou as cobertas e olhou para baixo.

Gritou. Uma reluzente película de água cobria o chão. E estava subindo. Enquanto ele observava, cobriu pela metade os atarracados pés da cama. Subia sem uma perturbação, uma borbulha, sem pausa! Fluía agora livremente por sobre o parapeito, mas não fazia barulho. Fenwick se aprumou na cama, agarrando o lençol junto ao queixo, olhos piscando, o pomo de Adão pulsando como um êmbolo em sua garganta.

Mas ele tem de fazer alguma coisa, tem de parar isso. A água alcançava agora os assentos das cadeiras, mas ainda não fazia barulho. Pudesse ele ao menos chegar à porta!

Pôs o pé descalço no chão e voltou a gritar. A água era fria como gelo. De repente, inclinado, encarando a superfície escura e lustrosa, algo pareceu empurrá-lo por trás. Caiu. Sua cabeça, seu rosto mergulhou no líquido gélido; parecia viscoso e, no âmago de seu gelo, quente como cera derretida. Esforçou-se para ficar de pé. A água estava à altura do peito. Gritou e voltou a gritar. Conseguia ver o espelho, as fileiras de livros, o Cavalo de Dürer, distante, impérvio. Golpeou a água e respingos pareceram grudar nele como escamas de peixe, pegajosos. Debateu-se, tentando abrir caminho até a porta.

A água estava agora no pescoço. Alguma coisa agarrou seu tornozelo. Alguma coisa o puxou. Ele se debateu, gritando:

— Me larga! Me larga! Estou dizendo para me largar! Eu te odeio! Te odeio! Eu não vou com você! Não vou…

A água cobriu-lhe a boca. Sentiu que alguém pressionava seus olhos com os nós dos dedos. Mãos frias agarraram-lhe a coxa nua.

VIII

Pela manhã, a pequena criada bateu e, sem resposta, entrou, como de praxe, com a água para seu barbear. Gritou com o que viu. Correu atrás do jardineiro.

Pegaram o corpo, com seus olhos vidrados, saltados, a língua de fora entre os dentes cerrados, e o puseram na cama.

O único sinal de desordem era um cântaro virado. Havia uma pequena mancha de água no tapete.

Era uma linda manhã. À suave brisa que soprava, um ramo de hera batia indolentemente no vidro da janela.


Tradução: Rodrigo R. Carmo

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