Porque o sangue é a vida, de F. Marion Crawford

Havíamos jantado no amplo terraço da velha torre porque ali era mais fresco durante o verão. Além disso, a pequena cozinha fora construída em um dos cantos da grande área quadrada, o que tornava mais conveniente comer ali do que carregar os pratos pelos íngremes degraus de pedra lascados e desgastados pela ação do tempo. Torres como esta foram erigidas ao longo de toda a costa ocidental da Calábria pelo imperador Carlos V no começo do século XVI a fim de repelir os piratas berberes, quando os infiéis se aliaram a Francisco I contra o imperador e a Igreja. Poucas permanecem de pé, e a minha é uma das maiores. Como a adquiri, há dez anos, e por que passo nela parte do ano são questões que não dizem respeito a esta história. A torre fica num dos locais mais isolados do sul da Itália, na extremidade de um curvo promontório rochoso que forma um pequeno, porém seguro ancoradouro natural no ponto mais ao sul do golfo de Policastro, logo ao norte do cabo Scalea, terra natal de Judas Iscariote, de acordo com uma velha lenda local. Ergue-se isolada nesse curvo esporão de rocha e não há uma casa sequer num raio de cinco quilômetros. Durante minha estadia, levo comigo um par de marujos, um dos quais é razoável cozinheiro; em minha ausência, fica aos cuidados de uma criaturinha com ares de gnomo, ex-mineiro e meu associado de longa data.

Meu amigo, que às vezes me visita em meu retiro veranil, é artista de profissão, escandinavo de nascença e cosmopolita por força das circunstâncias.

Jantáramos ao pôr do sol; o rubor do poente havia refulgido e se apagado e a púrpura vespertina impregnava a vasta cadeia de montanhas que abraça a leste o profundo golfo e se eleva cada vez mais em direção ao sul. Fazia calor e estávamos sentados no canto do terraço que dá para a terra à espera da brisa noturna que desce dos morros mais baixos. A cor se esvaía do céu num breve crepúsculo cinza escuro e uma lamparina projetava sua luz amarelada pela porta aberta da cozinha, onde os homens jantavam.

A lua nasceu de repente por sobre a crista do promontório, banhando o terraço e iluminando cada saliência de rocha e tufo de grama no terreno abaixo. Meu amigo acendeu o cachimbo e fixou o olhar num ponto na encosta do morro. Sabia para onde ele estava olhando e há muito me perguntava se perceberia ali algo digno de sua atenção. Era um local que eu conhecia bem. Seu interesse era mais do que óbvio, embora custasse a expressá-lo. Tal qual a maioria dos pintores, ele se fia em sua visão, como um leão se fia em sua força e um corço, em sua velocidade, e a incapacidade de conciliar o que vê com o que acha que deve ver sempre o incomoda.

— Estranho — falou. — Está vendo aquele montículo de terra bem ao lado do pedregulho?

— Sim — falei, adivinhando o que viria.

— Parece um túmulo — observou Holger.

— Verdade. Parece mesmo.

— Sim — prosseguiu meu amigo, olhos fixos no local. — Mas o estranho é que vejo o corpo em cima dele. Obviamente — continuou Holger, inclinando a cabeça como fazem os artistas —, deve ser um efeito de luz. Primeiro, não é realmente um túmulo. Segundo, se fosse, o corpo estaria embaixo, não em cima. Logo, é um efeito do luar. Não está vendo?

— Perfeitamente; sempre vejo nas noites de lua.

— Mas não parece interessá-lo muito — disse Holger.

— Ao contrário, me interessa sim, é que estou acostumado. Sua suposição não é absurda, tampouco. O montículo é realmente um túmulo.

— Bobagem! — exclamou Holger, incrédulo. — Agora você vai me dizer que o que vejo em cima dele é realmente um corpo!

— Não — respondi —, não é. Sei porque me dei o trabalho de ir até lá e conferir.

— O que é, então?

— Nada.

— Quer dizer que é mesmo um efeito de luz?

— Talvez seja. Mas o inexplicável é que não faz diferença se a lua está nascendo ou se pondo, se é crescente ou minguante. Havendo luar, venha do leste, do oeste ou de cima, desde que incida sobre o túmulo, vê-se ali o contorno do corpo.

Holger remexeu o fornilho do cachimbo com a ponta da faca, depois o tapou com o dedo. Quando o tabaco queimou bem, levantou da cadeira.

— Se não se importa — falou —, vou até lá dar uma olhada.

Cruzou o terraço e desapareceu pelos degraus escuros. Permaneci onde estava, apenas olhando para baixo até que ele emergisse da torre. Ouvi-o cantarolando uma velha canção dinamarquesa enquanto caminhava, sob o luar, rumo ao misterioso montículo. A dez passos de seu destino, Holger parou, avançou mais dois passos, retrocedeu três ou quatro e parou de novo. Sei o porquê. Ele chegara ao local onde a Coisa deixava de ser visível – onde, como ele diria, o efeito de luz mudava.

Chegou, enfim, ao montículo e ficou de pé sobre ele. Eu ainda conseguia ver a Coisa, que não estava mais deitada; estava de joelhos, cingindo Holger com os braços diáfanos e erguendo os olhos para seu rosto. Nesse momento, o vento noturno começou a baixar dos morros e uma brisa agitou meu cabelo, mais parecendo o bafejar de um outro mundo.

A Coisa parecia se apoiar em Holger na tentativa de se erguer; ele, ignorante, aparentava observar a torre, muito pitoresca quando banhada daquele lado pelo luar.

— Volte! — gritei. — Não fique aí a noite toda!

Pareceu-me que, ao descer do montículo, ele se movia com relutância, ou talvez com dificuldade. Era isso. Os braços da Coisa ainda se agarravam à cintura de Holger, mas seus pés não logravam deixar o túmulo. À medida que ele, lentamente, se afastava, ela se esticava e retorcia como uma voluta de névoa, fina e branca, até que Holger, como que tomado de um calafrio, estremeceu visivelmente. Ato contínuo, um gemido baixo chegou carregado pela brisa – o lamento, talvez, da pequena coruja que vive nas rochas – e a presença nebulosa se afastou rapidamente de Holger, voltando à sua posição estendida sobre o montículo.

Voltei a sentir a brisa no cabelo e, dessa vez, um gélido arrepio de medo percorreu minha espinha. Lembrei-me de minha própria visita ao túmulo, sozinho, ao luar; de, num primeiro momento, de perto, não ver nada; de subir no montículo, a exemplo de Holger; e de, ao voltar, certo de não haver nada lá, ser assaltado pela súbita convicção de que havia, sim, alguma coisa, eu só precisava olhar para trás. Lembrei-me de como ficara tentando a me virar e de como resistira à tentação por considerá-la indigna de um homem sensato, até que, para me livrar dela, eu estremecera, tal como Holger há pouco.

E agora eu sabia que também me haviam cingido os braços diáfanos, nebulosos; e tremi ao lembrar que, também naquela ocasião, ouvira a ave noturna. Só que não era coruja; era o lamento da Coisa.

Tornei a encher o cachimbo e me servi de uma taça de um encorpado vinho do sul; em menos de um minuto, Holger estava de volta.

— Não há nada ali, claro — falou —, mas é estranho assim mesmo. Sabe, quando estava voltando, tive tanta certeza de que havia alguma coisa atrás de mim que quase me virei para olhar. Foi difícil não fazê-lo.

Riu um pouco, bateu as cinzas do cachimbo e se serviu de vinho. Nada dissemos durante algum tempo; a lua viajava e olhávamos a Coisa em cima do montículo.

— Você devia bolar uma história a respeito disso — disse Holger após longo silêncio.

— Já existe uma — respondi. — Posso contar se não estiver com sono.

— Vá em frente — disse Holger, que gosta de histórias.


Na vila detrás do morro, o velho Alario estava morrendo. Você lembra dele, sem dúvida. Dizem que ganhou dinheiro vendendo joias falsas na América do Sul e que fugiu com os ganhos quando foi descoberto. Como é costume aqui entre todos que voltam com alguma coisa, logo se pôs a ampliar a casa, e como não há pedreiros na vila, foi buscá-los em Paola. E que sinistro par de tratantes – um napolitano de um olho só e um siciliano com uma funda cicatriz de mais de um centímetro na face esquerda. Via-os com frequência, pois costumavam vir aqui aos domingos pescar sobre as rochas. Quando Alario pegou a febre que o matou, os pedreiros ainda estavam trabalhando. Como parte do pagamento era em casa e comida, dormiam lá mesmo. O velho era viúvo e só tinha um filho, Angelo, gente muito melhor do que o pai. Angelo estava prometido à filha do homem mais rico da vila e, estranho quanto pareça, embora o casamento tivesse sido arranjado pelos pais, dizia-se que os jovens estavam realmente enamorados.

Aliás, todas as moças da vila estavam enamoradas de Angelo, entre elas uma criatura selvagem e bela, mais parecida com uma cigana do que qualquer outra jovem por essas bandas. Chamava-se Cristina, dona de lábios muito vermelhos e olhos muito escuros, compleição esguia e uma língua diabólica. Mas Angelo não dava a mínima para ela. Era um sujeito um tanto simplório, bem diferente do velhaco do pai, e sob o que eu chamaria de circunstâncias normais, creio mesmo que jamais olharia para outra garota que não a rechonchudinha simpática e de polpudo dote com quem o pai pretendia casá-lo. Mas o rumo que as coisas tomaram não foi normal nem natural.

Por outro lado, um jovem pastor dos morros acima de Maratea, muito bem-apessoado, era apaixonado por Cristina, que parecia ser-lhe um tanto indiferente. Cristina não tinha meios regulares de sustento, mas era uma boa moça disposta a cumprir qualquer tarefa ou percorrer qualquer distância em troca de pão ou feijão e de um lugar para dormir. Ficava especialmente satisfeita quando arranjava alguma coisa para fazer perto da casa do pai de Angelo. Não há médico na vila e quando os vizinhos viram que o velho Alario estava morrendo, mandaram Cristina a Scalea buscar um. A tarde já estava no fim, e se demoraram tanto foi porque o moribundo mão de vaca, enquanto pôde falar, se recusou a permitir tal extravagância. Porém, depois que Cristina partiu, as coisas pioraram rapidamente; o padre foi trazido ao leito e, após fazer o que pôde, comunicou aos presentes a morte do velho e foi embora.

Você conhece essa gente. Têm pavor da morte. Num minuto, a sala estava cheia; mal o padre terminou de falar, não havia ninguém. Já era noite. Desceram apressados os degraus escuros e ganharam a rua.

Angelo, como eu disse, estava ausente; Cristina não havia voltado – a empregada que cuidara do doente bateu em retirada com os outros e deixou desacompanhado o cadáver à luz bruxuleante do candeeiro de barro.

Passados cinco minutos, e após cuidadoso exame, dois homens – o napolitano caolho e seu companheiro siciliano – entraram sorrateiramente e se arrastaram até onde estava o corpo. Sabiam o que queriam. Ato contínuo, puxaram de baixo da cama um pequeno e pesado baú com guardas de ferro e, antes mesmo que alguém pensasse em voltar para junto do defunto, deixaram a casa e a vila acobertados pela escuridão. Bastante fácil, considerando que a casa de Alario é a última na direção da garganta que conduz até cá embaixo; os ladrões simplesmente saíram pela porta dos fundos, saltaram o muro de pedras e não tiveram com que se preocupar senão com a possibilidade de topar com algum andarilho noturno – improvável, já que poucos utilizam aquela trilha. Carregavam uma pá e um alvião e empreenderam sem acidente sua fuga.

Estou contando a história como imagino ter acontecido, já que, obviamente, não há testemunhas dessa parte. Os homens desceram a garganta com a intenção de enterrar a caixa até poderem voltar com um barco para transportá-la. Deviam ser suficientemente espertos para inferir que parte do dinheiro, ao menos, estaria em cédulas, caso contrário teriam enterrado o baú na areia úmida da praia, onde estaria muito mais seguro. Porém, se tivessem de deixá-lo lá muito tempo, o papel acabaria apodrecendo, motivo pelo qual escolheram cavar próximo ao pedregulho. Sim, no exato local onde agora está o montículo.

Cristina, em Scalea, não encontrou o médico, que fora chamado a algum lugar subindo o vale, como quem segue para San Domenico. Se o tivesse encontrado, teriam vindo de mula pela estrada de cima, melhor para viajar, apesar de muito mais longa. Mas Cristina tomou o atalho pelas rochas, que passa cerca de quinze metros acima do montículo e contorna aquela curva. Os homens estavam cavando quando passou e ela os ouviu trabalhar. Não era de seu feitio seguir adiante sem descobrir de onde vinha o barulho, ela que jamais temera nada na vida; além do mais, os pescadores às vezes desembarcavam aqui à noite em busca de pedras para servir de âncora ou de gravetos para suas fogueiras. Estava escuro e Cristina provavelmente chegou bem perto dos dois antes de perceber o que estavam fazendo. Ela os conhecia, claro, e eles a conheciam, e souberam imediatamente que estavam à sua mercê. Só havia uma coisa a fazer para garantir sua segurança, e não vacilaram: golpearam a coitada na cabeça, cavaram fundo e a enterraram rapidamente junto com o baú. Devem ter compreendido que sua única chance de fugir à suspeita seria voltar à vila antes que percebessem sua ausência, o que fizeram sem demora, sendo encontrados, meia-hora depois, papeando calmamente com o homem que fazia o caixão de Alario, de quem eram próximos e com quem trabalhavam na obra na casa do velho. Até onde sei, os únicos que sabiam onde Alario escondia seu tesouro eram Angelo e a velha criada que mencionei. Angelo estava ausente; foi a mulher quem descobriu o roubo.

É fácil entender por que ninguém mais sabia onde estava o dinheiro. O velho mantinha a porta trancada e, quando não estava em casa, levava consigo a chave; só deixava entrar a empregada para limpar quando estava presente. Mas todos na vila sabiam que ele tinha dinheiro em algum lugar e os pedreiros provavelmente descobriram onde saltando a janela em sua ausência. Não fosse o delírio que o acompanhou até a perda da consciência, o velho estaria em franca agonia por seus bens. Bens cuja existência a fiel criada esquecera, ainda que momentaneamente, ao bater em retirada com os outros, tomada de horror pela morte. Voltou em menos de vinte minutos, acompanhando as velhas carpideiras costumeiramente encarregadas de arrumar os mortos para o enterro. A princípio, não teve coragem de se aproximar com elas da cama; contudo, fingindo recolher alguma coisa que deixara cair, se ajoelhou e olhou por baixo do estrado. As paredes do quarto haviam sido recentemente caiadas até o chão e uma olhadela bastou para revelar que o baú havia desaparecido. Estava lá à tarde, donde se deduzia que havia sido roubado no curto intervalo em que ela deixara o quarto.

Não há carabineiros designados para a vila; nem mesmo guarda municipal, porque não há municipalidade. Creio que nunca tenha existido. De algum modo misterioso, a vila é responsabilidade de Scalea, e de lá para cá leva algumas horas. Após viver ali a vida toda, nem mesmo ocorreu à criada apelar a alguma autoridade civil. Saiu simplesmente gritando no escuro, berrando que a casa de seu falecido patrão havia sido assaltada. Muita gente saiu para olhar, mas de início ninguém pareceu inclinado a ajudá-la. A maioria, medindo-a pela própria régua, cochichava que ela mesma provavelmente roubara o dinheiro. O primeiro a se mexer foi o pai da moça a quem Angelo estava prometido; mobilizando os seus, pessoalmente interessados na fortuna que devia ingressar na família, declarou suspeitos os dois pedreiros empregados na obra da casa. Conduziram uma busca por eles que, naturalmente, começou na casa de Alario e terminou na carpintaria, onde os ladrões foram encontrados discutindo uma medida de vinho com o carpinteiro próximo ao caixão semiacabado e à luz de um candeeiro de barro cheio de óleo e sebo. O grupo de busca prontamente acusou os delinquentes do crime e ameaçou trancá-los no porão até que os carabineiros chegassem de Scalea. Os dois sujeitos se entreolharam um instante e, sem a menor hesitação, apagaram a luz única, tomaram o esquife inacabado e, usando-o como uma espécie de aríete, investiram contra seus acusadores no escuro. Em pouco tempo, já estavam fora de alcance.

Assim termina a primeira parte da história. O tesouro desaparecera sem deixar traço, o que levou à conclusão de que os ladrões haviam conseguido carregá-lo na fuga. O velho foi sepultado e, quando finalmente voltou, Angelo teve de emprestar dinheiro para pagar pelo mísero funeral, e até nisso teve dificuldade. Desnecessário dizer que, ao perder a herança, perdeu também a noiva. Nesta parte do mundo, os casamentos seguem rígidos princípios comerciais, e se o valor prometido não for entregue na data marcada, a noiva ou o noivo cujos pais falharam em provê-lo pode muito bem sair de fininho, pois não haverá matrimônio. O pobre Angelo sabia disso. Seu pai quase não tinha terras, e agora que o dinheiro vivo que trouxera da América do Sul se fora, só restavam as dívidas decorrentes do material de construção que seria usado na ampliação e melhoria da velha casa. Angelo estava na miséria e, como manda o figurino, a criaturinha simpática e rechonchuda que seria sua virou-lhe a cara. Quanto a Cristina, vários dias se passaram sem que dessem por sua falta, já que ninguém se lembrava de ter sido enviada a Scalea para buscar o médico, que nunca chegara. Não era incomum desaparecer assim, dias a fio, quando conseguia algum trabalho aqui e ali nas distantes fazendas para lá dos morros. Mas quando não voltou de todo, começaram a especular e chegaram à conclusão de que havia conspirado com os pedreiros e fugido com eles.


Fiz uma pausa e esvaziei meu copo.

— Esse tipo de coisa não aconteceria em nenhum outro lugar — observou Holger, tornando a encher seu interminável cachimbo. — É incrível o encanto natural que o assassinato e a morte súbita parecem despertar em locais românticos como este. Coisas que seriam simplesmente brutais ou repugnantes em outro lugar se tornam dramáticas e misteriosas porque estamos na Itália, numa genuína torre construída por Carlos V contra piratas berberes.

— Há alguma verdade nisso — admiti. Holger é o sujeito mais romântico do mundo, mas sempre acha necessário explicar seus sentimentos.

— Suponho que tenham encontrado o corpo da pobre moça enterrado com a caixa — disse ele quase sem pausa.

— Já que está tão interessado — respondi —, aqui vai o resto da história.

A lua chegara ao apogeu; os contornos da Coisa em cima do montículo eram mais nítidos do que antes.


A vila não demorou a retomar sua vidinha maçante. Ninguém sentia falta do velho Alario, que, ausente muito tempo em suas viagens à América do Sul, nunca se tornara figura familiar em sua própria terra. Angelo morava na casa semiacabada, mas, como não tinha dinheiro, não podia pagar pelos serviços da velha criada, que aparecia somente de vez em quando para lavar uma ou outra camisa em nome dos velhos tempos. Além da casa, herdara um pedacinho de terra a alguma distância da vila; tentou cultivá-lo, mas sem muito entusiasmo, pois sabia que jamais conseguiria pagar todos os impostos sobre o torrão e a casa, que acabariam sendo confiscados pelo governo ou arrestados por conta da dívida do material de construção, cuja devolução o fornecedor se recusava a aceitar.

Angelo estava para lá de infeliz. Quando o pai era vivo e rico, todas as garotas do vilarejo o amavam; agora, tudo mudara. Era agradável ser admirado e cortejado, e convidado para um copo de vinho pelos pais de jovens casadeiras. Era difícil ser desprezado, quando não escarnecido por ter sido roubado de sua herança. Preparava as próprias refeições modestas e de triste ficou melancólico e taciturno.

Ao entardecer, encerrada a lida diária, em vez de se juntar aos de sua idade no átrio da igreja, deu para errar em locais solitários nos arredores da vila até altas horas. Depois se esgueirava para casa e ia dormir para economizar na iluminação. Mas naquelas solitárias horas crepusculares, começou a ter estranhos devaneios. Nem sempre estava sozinho; muitas vezes, ao se sentar num toco de árvore onde o estreito caminho faz a curva e desce a garganta, tinha a certeza de que uma mulher se aproximava silenciosamente por sobre as rochas irregulares, como se estivesse descalça, e ficava sob uma moita de castanheiros apenas cinco metros trilha abaixo gesticulando para ele. Embora ela estivesse na sombra, ele sabia que seus lábios eram vermelhos e que, quando se abriam um pouco e riam para ele, deixavam à mostra dois pequenos dentes pontiagudos. Essas coisas ele sabia antes mesmo de ver, e sabia que era Cristina e que estava morta. Mesmo assim, não tinha medo; questionava apenas se era sonho, pois achava que, se estivesse desperto, ficaria assustado.

Além disso, a morta tinha lábios vermelhos, o que só seria possível em sonho. Sempre que se aproximava da garganta após o pôr do sol, ela estava esperando por ele ou aparecia logo depois, e ele começou a ter a impressão de que ela chegava cada dia mais perto. De início, só tinha certeza de sua boca vermelho-sangue, mas agora cada feição se tornava mais nítida e o rosto pálido o encarava com olhos profundos e famintos.

Eram os olhos que se obscureciam. Pouco a pouco, cresceu nele o entendimento de que, algum dia, o sonho não terminaria quando se virasse para ir para casa, mas o conduziria trilha abaixo, para o berço daquela visão que acenava para ele de bem mais perto agora. A lividez de suas faces não era o descoramento dos mortos, era a palidez da fome, com a furiosa e insaciada avidez dos olhos que o devoravam; que se banqueteavam em sua alma e o enfeitiçavam; e que estavam, por fim, próximos dos seus e o paralisavam. Não sabia dizer se o hálito dela era quente como fogo ou frio como gelo; se os lábios vermelhos queimavam os seus ou os congelavam; ou se os dedos dela em seus pulsos cauterizavam a pele ou a ulceravam com frio intenso; não sabia se estava desperto ou não, se ela estava viva ou morta, mas sabia que ela o amava, ela, somente, entre todas as criaturas deste mundo ou de outro qualquer, e que tinha poder sobre ele.

Quando a lua, naquela noite, fez-se alta no céu, a sombra daquela Coisa não estava sozinha no montículo.

A fresca da manhã acordou Angelo, encharcado de orvalho e com um frio que lhe penetrava a carne, o sangue, os ossos. Abriu os olhos para a fraca luz acinzentada e viu que as estrelas ainda cintilavam. Estava muito fraco e seu coração batia tão devagar que era como se estivesse a ponto de desmaiar. Virou lentamente a cabeça, apoiada no montículo como se este fosse um travesseiro, mas o outro rosto não estava lá. Foi subitamente tomado pelo medo, um medo indescritível e desconhecido; levantou de um salto e correu garganta acima, e não olhou para trás até chegar à porta da casa nos arredores da vila. Naquele dia, foi trabalhar macambúzio; as horas se arrastaram penosamente até o sol tocar o mar e se esconder e os altos morros acima de Maratea se tingirem de púrpura contra o cinza columbino do céu oriental.

Angelo pôs no ombro a enxada pesada e deixou o campo. Sentia-se menos cansado agora do que de manhã, quando começara a trabalhar, mas prometeu a si mesmo que iria direto para casa, comeria o melhor jantar que pudesse preparar e dormiria a noite toda em sua cama como um bom cristão. Não tardaria próximo à garganta; não mais seria tentado por uma sombra de lábios vermelhos e hálito gelado; não se entregaria novamente àquele sonho de terror e prazer. Estava próximo à vila agora; o sol se pusera havia meia-hora e o sino rachado da igreja enviava ecos dissonantes pelos rochedos e ravinas para anunciar a todas as boas pessoas que o dia havia chegado ao fim. Angelo demorou um instante onde a trilha se bifurcava, seguindo à esquerda para a vila e à direita para a garganta, onde uma moita de castanheiros margeava o caminho estreito. Deteve-se um minuto, tirando da cabeça o chapéu gasto e encarando o mar que desbotava rapidamente a oeste, seus lábios repetindo em silêncio a familiar prece vespertina. Seus lábios se mexiam, mas as palavras que lhe vinham à mente perdiam o sentido e se transformavam em outras, terminando em um nome que pronunciou em voz alta – Cristina! Nisso, sua vontade relaxou, a realidade se desfez e o sonho voltou a aprisioná-lo, conduzindo-o rápida e decididamente como um sonâmbulo, descendo, descendo pela íngreme trilha na escuridão que se adensava. E enquanto deslizava a seu lado, Cristina sussurrava coisas doces e estranhas em seu ouvido, coisas que, desperto, de alguma maneira, sabia que não compreenderia; mas que eram agora as palavras mais maravilhosas que ouvira em toda a sua existência. Ela também o beijava, mas não nos lábios. Sentia os beijos penetrantes na pele clara do pescoço e sabia que os lábios dela estavam vermelhos. Em ritmo acelerado, o sonho delirante varou o crepúsculo, a escuridão, o nascer da lua e toda a suntuosidade da noite de verão. Porém, no frio amanhecer, ele jazia no montículo lá embaixo, semimorto, lembrando e não lembrando, exangue e, ainda assim, desejoso de entregar mais àqueles lábios vermelhos. O medo veio em seguida, o terrível pânico sem nome, o horror mortal que guarda os confins do mundo que não podemos ver nem conhecer como conhecemos outras coisas, mas que sentimos quando seu frio cortante congela nossos ossos e arrepia nosso cabelo com o toque de dedos espectrais. Angelo, mais uma vez, levantou de um salto e fugiu da garganta com o dia nascendo, mas seus passos eram menos firmes do que antes e ele arfava enquanto corria; e quando chegou à clara fonte que brota da encosta no meio do caminho, caiu de joelhos, mergulhou o rosto e bebeu como jamais bebera antes – torturado pela sede do ferido que sangra a noite inteira no campo de batalha.

Ela o possuía inteiramente agora e ele não tinha como escapar ao jugo, apenas vir a seu encontro todas as noites até que ela roubasse dele a última gota de sangue. Era em vão que, ao fim do dia, tentava tomar outro rumo e ir para casa por um caminho que não levasse à garganta. Era em vão que prometia a si mesmo toda manhã ao subir a solitária trilha da praia até a vila. Era em vão, pois quando o sol mergulhava no oceano e a fresca do anoitecer deixava seu esconderijo diurno para alegria do mundo exausto, seus pés tomavam o velho caminho e ela o aguardava à sombra dos castanheiros; e tudo acontecia como antes, os beijos que ela dava na pele clara de seu pescoço enquanto adejava pela trilha, envolvendo-o com o braço. E enquanto seu sangue minguava, mais faminta e mais sedenta ficava ela, e era cada vez mais difícil acordar à primeira luz do dia e encarar a íngreme trilha de volta à vila; e quando ia trabalhar, seus pés se arrastavam penosamente e mal havia força em seus braços para manejar a enxada pesada. Pouco falava com quem quer que fosse, mas diziam que estava “se acabando” de amor pela jovem com quem teria casado não tivesse perdido a herança; e zombavam dessa ideia, pois esta não é uma terra muito romântica. Nessa época, Antonio, o sujeito que cuida da torre, voltou de uma visita a sua gente, que mora para os lados de Salerno. Estivera ausente desde antes da morte de Alario e ignorava os acontecimentos. Disse-me que chegou no fim da tarde e se fechou na torre para comer e dormir, cansado que estava. Passava da meia-noite quando acordou; a lua minguante nascia sobre o ombro do morro. Olhando em direção ao montículo, viu alguma coisa e não voltou a dormir naquela noite. Quando tornou a sair, já na manhã seguinte e em plena luz do dia, não havia nada no montículo a não ser pedras soltas e areia trazida pelo vento. Mesmo assim, não chegou muito perto; tomou o caminho até a vila e foi direto à casa do velho padre.

— Vi algo maligno esta noite — falou. — Vi como os mortos bebem o sangue dos vivos. E o sangue é a vida.

— Conte-me o que viu — disse o padre em resposta.

E Antonio contou.

— Precisa trazer sua Bíblia e água benta hoje à noite — acrescentou. — Estarei aqui antes do pôr do sol para acompanhá-lo até lá, e se vossa reverência não se importar de cear comigo enquanto esperamos, tomarei as providências.

— Eu irei — respondeu o padre —, pois já li a respeito dessas estranhas criaturas que não estão vivas nem mortas e que permanecem incorruptas em suas sepulturas, saindo à noite para se alimentar de vida e sangue.

Antonio não sabia ler, mas ficou satisfeito de ver que o padre entendia do negócio; pois, obviamente, os livros deviam tê-lo instruído sobre a melhor maneira de apaziguar para sempre a coisa semiviva.

Depois foi trabalhar, o que significa, em grande medida, ficar sentado à sombra da torre, quando não empoleirado em algum rochedo com uma linha de pesca pegando nada. Porém, naquele dia, Antonio foi duas vezes ao montículo e procurou, à luz do sol, algum buraco pelo qual a criatura pudesse entrar e sair; mas nada encontrou. Quando o sol começou a baixar e o ar ficou mais fresco à sombra, foi buscar o velho padre, levando consigo uma pequena cesta de palha na qual colocaram uma garrafa de água benta, bacia e aspersório, além da estola de que o padre haveria de precisar; desceram e aguardaram na entrada da torre até que escurecesse. No entanto, à última luz, muito fraca e acinzentada, viram movimento, bem ali, duas figuras: um homem que caminhava e uma mulher que adejava a seu lado e que, com a cabeça apoiada em seu ombro, beijava-lhe o pescoço. O padre me disse a mesma coisa, e que seus dentes batiam e que agarrou o braço de Antonio. A visão passou e desapareceu na sombra. Então Antonio pegou o odre com o forte licor que guardava para grandes ocasiões e tomou um trago de fazer o velho se sentir quase jovem de novo; pegou o lampião, a enxada e a pá, entregou ao padre a estola e a água benta e partiram rumo ao local onde a tarefa haveria de ser executada. Diz Antonio que, a despeito do rum, seus joelhos tremiam e que o padre tropeçava no latim. Pois quando ainda estavam a alguns metros do montículo, a luz bruxuleante do lampião incidiu sobre o rosto branco de Angelo, inconsciente como que adormecido, e sobre a pele exposta do pescoço, na qual um rubro filete de sangue corria até a gola; e sobre um segundo rosto que se erguia do banquete – sobre olhos mortos e fundos que enxergavam apesar da morte – sobre lábios entreabertos, mais vermelhos que a própria vida – sobre dois dentes cintilantes nos quais reluzia uma gota de líquido rosado. Nisso, o padre, bom homem, cerrou os olhos e aspergiu água benta, e sua voz esganiçada se alteou quase num grito; e Antonio, que de covarde não tem nada, ergueu numa das mãos a picareta, na outra a lanterna, e saltou adiante, ignorando o desfecho; e jura que ouviu um grito de mulher antes de a Coisa desaparecer, deixando só no montículo o inconsciente Angelo, com o filete vermelho no pescoço e um suor de morte na testa fria. Levantaram-no, semimorto como estava, e o deitaram no chão ali perto; em seguida, Antonio começou a trabalhar e o padre o ajudou, embora fosse velho e não pudesse fazer muito. Cavaram fundo e, por fim, Antonio, ao lado da cova, inclinou-se com o lampião para tentar divisar alguma coisa.

Ele tinha cabelo castanho-escuro, com fios brancos nas têmporas; depois daquele dia, em menos de um mês, ficou grisalho como um texugo. Trabalhou nas minas durante a juventude e, nesses lugares, quando ocorrem acidentes, veem-se coisas feias, mas nunca o que viu naquela noite – aquela Coisa que não está viva nem morta, aquela coisa que não pertence ao mundo nem à sepultura. Antonio levara consigo uma coisa que o padre não havia percebido. Ele a fizera naquela tarde – uma pontiaguda estaca de madeira resistente resgatada do mar. De posse dela e de sua pesada picareta, saltou na cova, levando junto o lampião. Nada neste mundo, creio eu, o obrigaria a contar o que houve depois, e o velho padre estava assustado demais para olhar. Diz ele que ouviu Antonio arfar como um animal selvagem e se mover como se enfrentasse alguma coisa que quase lhe fosse páreo; e ouviu também um som maligno, acompanhado de pancadas, como que de carne e ossos sendo violentamente trespassados; e, em seguida, o som mais horrível de todos – um grito de mulher, o urro preternatural de uma mulher nem viva nem morta, mas enterrada há vários dias. E ele, o pobre e velho padre, ajoelhado na areia, pendulava vociferando suas preces e exorcismos na tentativa de afogar esses barulhos terríveis. De repente, um pequeno baú com guardas de ferro voou do buraco e rolou de encontro ao joelho do padre; dentro de mais um instante, Antonio estava a seu lado, branco como uma vela à luz bruxuleante do lampião, despejando furiosamente com a pá areia e cascalho dentro da sepultura e olhando por sobre a beirada até a cova estar cheia pela metade; e o padre disse que havia muito sangue nas mãos e nas roupas de Antonio.


Fim da história. Holger terminou o vinho e se recostou na cadeira.

— Então Angelo recuperou o que era seu — falou. — Casou-se com a “doce criaturinha” a quem estava prometido?

— Não; ficou terrivelmente abalado. Foi para a América do Sul e nunca mais deu notícia.

— E o corpo daquela pobre criatura continua ali, suponho — disse Holger. — Eu me pergunto: estará, enfim, verdadeiramente morta?

Pergunta que também me faço. Morta ou viva, porém, dificilmente me disporia a vê-la, mesmo à luz do dia. Antonio está grisalho como um texugo e, desde aquela noite, nunca mais foi o mesmo.


Tradução: Rodrigo R. Carmo

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