O quarto na torre, de E. F. Benson


Alerta de gatilho
Tema: suicídio

É provável que todos que sonham com alguma frequência tenham tido, pelo menos uma vez, a experiência de ver repetido, no mundo real, um evento ou uma série de circunstâncias que lhe tenha ocorrido primeiro durante o sono. Em minha opinião, tal ocorrência está longe de ser estranha: muito mais esquisito seria se isso não ocorresse vez ou outra, já que nossos sonhos, via de regra, envolvem pessoas que conhecemos e lugares que nos são familiares, de modo que poderiam muito bem ocorrer no mundo desperto e à luz do dia. É verdade que esses sonhos muitas vezes descambam para algum incidente bizarro ou fantástico, o que torna impensável sua subsequente realização, mas num simples cálculo de probabilidades, não parece minimamente implausível que um cenário imaginado por alguém que sonha com frequência possa ocasionalmente se tornar realidade. Por exemplo: não faz muito tempo, vivenciei a realização de um sonho que em nada me parece notável, tampouco possuidora de algum tipo de significado psíquico. Aconteceu da seguinte maneira.

Um amigo que mora no exterior tem a gentileza de me escrever a cada quinze dias. Assim sendo, é provável que minha mente, transcorridas duas semanas ou tantos quantos dias sem notícias suas, fique, conscientemente ou não, expectante por receber uma nova carta. Semana passada, sonhei que, ao subir para o quarto a fim de me preparar para o jantar, ouvia, como muitas vezes ouço, as batidas do carteiro na porta da frente e, dando meia-volta, tornava a descer. Em meio a outras correspondências, havia uma carta dele. Nesse ponto se introduzia o fantástico, pois, ao abri-la, encontrava no envelope um ás de ouros no qual estava escrito, em sua familiar caligrafia: “Envio-lhe esta para que a guarde em segurança, pois, como sabe, beira a insensatez conservar ases na Itália”. No dia seguinte, estava prestes a subir para me vestir quando escutei a batida do carteiro e fiz precisamente como havia feito no sonho. Entre outras cartas, havia uma de meu amigo. Só que, desta vez, ela não continha um ás de ouros. Contivesse, eu teria dado mais importância ao fato, que, até aí, me pareceu uma coincidência perfeitamente normal. Eu, sem dúvida, esperava, conscientemente ou não, uma carta dele e isso me sugeriu meu sonho. Do mesmo modo, o fato de meu amigo não me escrever há uma quinzena sugeriu a ele que o fizesse.

Outras vezes, porém, não é tão fácil encontrar explicação desse tipo, e para a história a seguir não encontro explicação que seja. Da escuridão ela veio e para lá retornou.

Fui, a vida toda, um sonhador habitual: poucas são as vezes em que, pela manhã, ao acordar, não me deparo com a lembrança de alguma experiência mental e, às vezes, parece que uma série das mais fantásticas aventuras me ocorre durante a noite. Essas aventuras, quase sem exceção, são agradáveis, embora frequentemente não passem de trivialidades. É justamente de uma exceção que falarei.

Tinha cerca de dezesseis anos quando determinado sonho me ocorreu pela primeira vez. Começava à porta de uma grande casa de tijolos vermelhos onde, pelo que podia apreender, eu deveria me hospedar. O criado que me abria a porta dizia que o chá estava sendo servido no jardim e me guiava por um vestíbulo baixo, revestido de lambris escuros e com uma grande lareira aberta até um verdejante gramado rodeado por canteiros de flores. Ali, um pequeno grupo estava reunido à mesa do chá, mas as pessoas me eram desconhecidas, à exceção de uma, um colega de escola chamado Jack Stone, que me apresentava a sua mãe, a seu pai (os anfitriões) e a suas duas irmãs. Lembro que fiquei um tanto surpreso ao me ver ali, uma vez que o garoto em questão me era quase desconhecido e não me agradava o pouco que dele eu sabia; além do mais, saíra da escola no ano anterior. A tarde estava muito quente e a sensação de sufocamento era intolerável. Um muro de tijolos vermelhos corria do outro lado do gramado, com um portão de ferro no centro e uma nogueira do lado de fora. Ficamos à sombra da casa, de frente para um rol de compridas janelas pelas quais se via uma mesa posta reluzindo com vidro e prata. Esse lado ajardinado da casa era bastante extenso e numa de suas extremidades ficava uma torre de três andares que me parecia bem mais antiga do que o restante da propriedade.

Não demorou muito, a sra. Stone, que, como todo o grupo, se mantivera em absoluto silêncio, me disse: — Jack vai lhe mostrar seu quarto: reservei para você o quarto na torre.

Inexplicavelmente, meu coração desandou diante dessas palavras. Era como se eu soubesse que me seria dado o quarto na torre e que ele conteria algo terrível e importante. Jack se levantou no mesmo instante e entendi que devia segui-lo. Atravessamos o vestíbulo em silêncio, subimos uma grande escadaria de carvalho com muitas curvas e chegamos a um estreito patamar com duas portas. Jack abriu uma das portas para que eu entrasse e, sem me acompanhar, fechou-a atrás de mim. Então, soube que minha suposição estava correta: havia algo horrível no quarto e, sufocado pelo terror crescente do pesadelo, acordei num espasmo de medo.

A partir de então, esse sonho ou alguma variação dele ocorreu de modo intermitente durante quinze anos. Na maioria das vezes, transcorria exatamente desta maneira, a chegada, o chá servido no jardim, o silêncio fúnebre seguido por aquela única frase fatal, a subida com Jack Stone até o quarto na torre habitado pelo horror, e terminava sempre no pesadelo de terror causado pelo que havia no quarto, embora eu nunca visse o que era. Outras vezes, experimentava variações desse mesmo tema. Acontecia, por exemplo, de estarmos sentados à mesa na sala de jantar, por cujas janelas eu olhara naquela primeira noite em que fui visitado pelo sonho da casa; mas, onde quer que estivéssemos, havia o mesmo silêncio, a mesma sensação de terrível opressão e agouro. E o silêncio, eu sabia, seria sempre quebrado pela sra. Stone dizendo:

— Jack vai lhe mostrar seu quarto: reservei para você o quarto na torre —, no que (isso era invariável) eu tinha de segui-lo pela escadaria de carvalho com muitas curvas e entrar no lugar que eu temia mais e mais a cada vez que o visitava durante o sono. Ou, ainda, eu me encontrava jogando cartas, sempre em silêncio, numa sala de visitas iluminada pela luz ofuscante de imensos candelabros. O que jogávamos não faço ideia; o que recordo, com uma sensação de miserável expectativa, é que a sra. Stone não tardava a se levantar e dizer:

— Jack vai lhe mostrar seu quarto: reservei para você o quarto na torre.

Esse cômodo onde jogávamos ficava ao lado da sala de jantar e, como eu disse, estava sempre muito iluminado, ao contrário do resto da casa, sempre crepuscular e sombrio. Ainda assim, quantas vezes, a despeito dos buquês de luz, não me debrucei sobre as cartas que me eram dadas, mal conseguindo, por algum motivo, vê-las. Seus desenhos, também, eram estranhos: não havia naipes vermelhos, eram todos pretos, e certas cartas – que eu abominava e temia – eram pretas de todo.

Conforme o sonho se repetia, fui conhecendo a maior parte da casa. Havia uma sala para fumantes depois da sala de visitas, no final de um corredor com uma porta de baeta verde. Estava sempre muito escuro ali, e todas as vezes que ia até lá, eu passava por alguém que não conseguia identificar saindo da sala. Curiosas mudanças, também, afetavam os personagens que povoavam o sonho, como aconteceria com pessoas reais. A sra. Stone, por exemplo, que tinha cabelo preto quando a vi pela primeira vez, ficou grisalha, e em vez de levantar rapidamente ao dizer “Jack vai lhe mostrar seu quarto: reservei para você o quarto na torre”, o fazia agora com muita dificuldade, como se lhe faltasse força nos membros. Jack também cresceu, um jovem mal-encarado de bigode castanho, e quando uma das irmãs deixou de aparecer, compreendi que havia casado.

Então, aconteceu de esse sonho não me visitar por seis meses ou mais, e comecei a nutrir a esperança, tal era o inexplicável terror que me causava, de que tivesse cessado de vez. Porém, após esse intervalo, me encontrei, certa noite, sendo novamente conduzido ao jardim para o chá, mas não vi a sra. Stone e todos os outros vestiam preto. Adivinhei imediatamente o motivo e meu coração deu cambalhotas diante da ideia de que eu talvez não tivesse que dormir no quarto na torre dessa vez, e embora comumente ficássemos em silêncio, o sentimento de alívio me fez, nessa ocasião, falar e rir como nunca. Contudo, a situação não era de todo confortável: ninguém mais falava e todos olhavam secretamente uns para os outros. Logo secou meu falatório, e enquanto a luz se esvaía lentamente, crescia em mim uma apreensão pior do que qualquer sentimento anterior.

De repente, quebrou o silêncio uma voz que eu conhecia bem, a voz da sra. Stone, dizendo:

— Jack vai lhe mostrar seu quarto: reservei para você o quarto na torre.

Parecia vir de perto do portão no muro de tijolos vermelhos que delimitava o gramado; olhando por cima, vi que a grama do outro lado estava salpicada de lápides. Uma curiosa luz acinzentada emanava delas e pude ler a inscrição no túmulo mais próximo: “Em maligna memória de Julia Stone”. Jack se levantou, como de costume, e tornei a segui-lo pelo vestíbulo e pela escadaria cheia de curvas. Nessa ocasião, estava mais escuro que o normal, e quando entrei no quarto na torre, só consegui ver a mobília, cuja posição já me era familiar. Também havia um terrível cheiro de putrefação no quarto; acordei gritando.

O sonho, com as variações e mudanças que mencionei, continuou, com intervalos, durante quinze anos. Às vezes eu sonhava duas ou três noites seguidas; certa vez, como disse, houve um interregno de seis meses, mas, numa média razoável, diria que sonhava com a frequência de uma vez por mês. Tinha, obviamente, um quê de pesadelo, posto que sempre terminava no mesmo terror sufocante, o qual, longe de diminuir, parecia crescer e se renovar cada vez que eu o experimentava. Havia também uma estranha e temível consistência nele. Os personagens do sonho, como mencionei, envelheciam regularmente, morte e matrimônio visitavam aquela família silenciosa, e jamais, depois de sua morte, tornei a ver a sra. Stone em meu sonho. Mas era sempre sua voz que dizia que o quarto na torre me estava reservado, e quer tomássemos chá no jardim, quer a cena transcorresse num dos aposentos que davam vista para ele, sua lápide estava sempre visível logo depois do portão de ferro. O mesmo acontecia com a filha casada; em geral, estava ausente, mas voltou a aparecer uma ou duas vezes em companhia de um homem que julguei ser seu marido. Ele também estava sempre em silêncio. Porém, diante de sua constante repetição, deixei de atribuir ao sonho qualquer tipo de significado nas horas de vigília. Jamais voltei a encontrar Jack Stone em todos aqueles anos, tampouco vi uma casa que lembrasse a sombria casa de meu sonho. Foi aí que aconteceu.

Naquele ano, eu ficara em Londres até o final de julho e, durante a primeira semana de agosto, desci até Sussex, onde ficaria hospedado na casa que um amigo havia alugado para o verão no distrito de Ashdown Forest. Saí cedo de Londres, pois John Clinton me encontraria na estação de Forest Row e passaríamos o dia jogando golfe, indo para sua casa no fim da tarde. Partimos, após um dia agradabilíssimo, por volta das cinco a fim de percorrer, de carro, a distância de aproximadamente dezesseis quilômetros. Como ainda estava muito cedo, não tomamos o chá no clube, esperando para fazê-lo quando chegássemos à casa. No caminho, o tempo – que até então estivera deliciosamente fresco, apesar de quente – pareceu ficar muito abafado e opressivo, e me veio aquela sensação indefinível de ominosa apreensão que costuma preceder trovoadas. John, no entanto, não compartilhava de minha opinião, atribuindo minha falta de disposição ao fato de que eu havia perdido ambas as partidas. Os eventos provaram, contudo, que eu estava certo, embora não ache que a tempestade que caiu naquela noite tenha sido a causa única de minha depressão.

Nosso caminho passava por estradas profundamente encravadas entre altas encostas e, em pouco tempo, acabei adormecendo, sendo acordado apenas pela parada do motor. Com um súbito calafrio, em parte de medo, mas sobretudo de curiosidade, me encontrei na entrada da minha casa de sonhos. Atravessamos, eu tentando decidir se ainda sonhava ou não, um vestíbulo baixo com lambris escuros de carvalho e saímos para o gramado, onde o chá era servido à sombra da casa. Canteiros de flores o circundavam, um muro de tijolos vermelhos com um portão no meio delimitava um dos lados e, para além dele, uma nogueira se erguia num espaço de grama inculta. A fachada da casa era muito extensa e, numa das extremidades, havia uma torre de três andares visivelmente mais antiga que o restante.

Aqui, por ora, cessava a semelhança com o sonho recorrente. Não havia aquela silenciosa e, de certo modo, sinistra família, mas uma grande reunião de pessoas extremamente animadas, todas elas conhecidas. A despeito do horror que o sonho sempre me causara, nada semelhante se manifestava agora diante daquela reprodução de seu cenário. Mas eu tinha a mais intensa curiosidade sobre o que poderia acontecer.

O chá prosseguiu na mesma animação e logo a sra. Clinton se levantou. Naquele momento, achei que sabia o que diria. E o que disse, dirigindo-se a mim, foi:

— Jack vai lhe mostrar seu quarto: reservei para você o quarto na torre.

Nisso, por meio segundo, o horror do sonho se me abateu novamente. Mas passou rápido e, outra vez, não senti nada além da mais intensa curiosidade. Não demorou muito para que fosse amplamente satisfeita.

John se voltou para mim.

— Bem lá em cima, no lugar mais alto da casa — falou —, mas acho que ficará confortável. Estamos lotados. Quer dar uma olhada agora? Nossa, acho que você tem razão, vai cair uma tempestade. Como escureceu.

Levantei e o segui. Atravessamos o vestíbulo e subimos a escada perfeitamente familiar. Em seguida, ele abriu a porta e eu entrei. Naquele momento, fui outra vez assaltado por um terror puro e irracional. Não sabia o que temia; apenas temia. Então, num lampejo, como quando recordamos um nome há muito perdido na memória, soube do que tinha medo: da sra. Stone, cujo túmulo, com a sinistra inscrição “Em maligna memória”, vira tantas vezes em sonho logo depois do gramado localizado bem embaixo da minha janela. Então, mais uma vez, o medo passou tão completamente que me perguntei o que havia a temer, e me vi, calmo, sóbrio e equilibrado, no quarto na torre, cujo nome ouvira tantas vezes em sonho e cuja aparência me era tão familiar.

Inspecionei o quarto com certo sentimento de posse e descobri que nada mudara em relação às noites de sonho que me levaram a conhecê-lo tão bem. Logo à esquerda da porta ficava a cama, encostada à parede e com a cabeceira no canto. Na parede contígua ficavam a lareira e uma pequena estante de livros; de frente para a porta, a parede externa era pontuada por duas janelas com gelosia entre as quais ficava a penteadeira, enquanto o lavatório e um grande armário se alinhavam junto à quarta parede. Minha mala já havia sido desfeita e os acessórios para me vestir e despir se encontravam organizados no lavatório e no toucador, ao passo que minhas roupas para o jantar estavam estendidas sobre a colcha da cama. Então, com súbito e inexplicável pavor, percebi dois objetos, um tanto conspícuos, que jamais vira em meus sonhos: um retrato a óleo em tamanho natural da sra. Stone e um estudo em preto e branco de Jack Stone que o representava como me havia aparecido na semana anterior, no último da série de sonhos recorrentes: um homem de aparência maligna e segredista na casa dos trinta. O desenho, pendurado entre as janelas, encarava o retrato, pendurado na parede oposta, ao lado da minha cama. Ao olhá-lo, senti outra vez o horror do pesadelo se apoderar de mim.

O quadro retratava a sra. Stone como a vira por último em meus sonhos: velha, murcha e com cabelos brancos. Porém, em contraste com a evidente debilidade do corpo, ardiam sob o envoltório de pele uma exuberância e uma vitalidade terríveis, uma exuberância inteiramente maligna, uma vitalidade que espumava e borbulhava com inimaginável maldade. Maldade que irradiava dos olhos estreitos, oblíquos; sorria na boca demoníaca. Todo o rosto estava impregnado de uma hilaridade secreta e apavorante; as mãos, unidas sobre o joelho, pareciam tremer com uma satisfação contida e inominável. Então, vi que o retrato estava assinado no canto inferior esquerdo e, me indagando quem seria o artista, olhei mais de perto a inscrição: “Julia Stone por Julia Stone”.

Com uma leve batida na porta, John Clinton entrou.

— Tem tudo de que precisa?

— Tenho mais do que gostaria — falei, apontando para o quadro.

Ele riu.

— Que carranca — falou. — Pintado pela própria, também, se não me falha a memória. De todo modo, é difícil crer que tenha melhorado muita coisa.

— Mas você não percebe? — falei. — Esse rosto mal chega a ser humano. É a face de uma bruxa, de algum demônio.

Ele olhou mais de perto.

— É; não é muito agradável — falou. — Nada reconfortante, hã? Imagino que teria pesadelos dormindo com um negócio desse ao lado da cama. Posso mandar tirá-lo daí, se quiser.

— Agradeceria muito — falei.

Ele tocou a campainha e, com a ajuda de um empregado, removemos a pintura e a levamos para o patamar, onde a colocamos voltada para a parede.

— Nossa, a velha pesa um bocado — disse John, enxugando a testa. — Imagino o que teria em mente.

O peso extraordinário do quadro me impressionara também. Estava prestes a responder quando olhei de relance para minha mão. Havia sangue nela, em quantidade considerável, recobrindo a palma.

— Eu me cortei em alguma coisa — falei.

John deixou escapar uma interjeição de espanto.

— Ora, eu também — ele disse.

Simultaneamente, o empregado pegou o lenço e limpou a mão. Vi que também havia sangue nele.

John e eu voltamos ao quarto na torre e lavamos as mãos; mas não havia, nem em suas mãos nem nas minhas, o menor indício de arranhão ou corte. Pareceu-me que, tendo nos certificado disso, decidimos, numa espécie de acordo tácito, não tocarmos mais no assunto. De minha parte, algo havia me ocorrido vagamente em que eu preferia não pensar. Era apenas uma conjectura, mas eu acreditava que o mesmo havia ocorrido a ele.

O calor e a atmosfera carregada, pois a tempestade que esperávamos ainda não havia caído, pioraram muito após o jantar e, por algum tempo, boa parte do grupo, a qual incluía John Clinton e eu, ficou sentada do lado de fora, na área junto ao gramado onde havíamos tomado chá. A noite era de uma escuridão absoluta e nenhum brilho de estrela ou raio de luar parecia capaz de penetrar a mortalha de nuvens que cobria o céu. Aos poucos, o grupo se desfez – as mulheres foram para a cama, os homens se dispersaram nas salas de fumantes e de bilhar – e, às onze, só restávamos meu anfitrião e eu. Alguma coisa parecia tê-lo incomodado a noite toda e tão logo ficamos sozinhos, ele falou.

— O homem que nos ajudou com o quadro também tinha sangue na mão, você reparou? Perguntei há pouco se ele havia se cortado e ele disse que achava que sim, mas que não tinha encontrado nenhum sinal de corte. Então, de onde veio aquele sangue?

À força de dizer a mim mesmo que não pensaria no assunto, tivera sucesso em não fazê-lo, e não queria, especialmente tão perto da hora de dormir, ser lembrado do ocorrido.

— Não sei — eu disse — e realmente não me importo desde que o retrato da sra. Stone não esteja ao lado da minha cama.

Ele se levantou.

— Mas é estranho — falou. — Rá! Agora você vai ver outra coisa estranha.

Um cachorro, um terrier irlandês, havia saído da casa enquanto conversávamos. Atrás de nós, a porta que dava para o vestíbulo estava aberta e um retângulo de luz se projetava sobre o gramado e iluminava o portão de ferro que levava ao terreno silvestre lá fora, onde ficava a nogueira. Percebi que o cão tinha o pelo todo eriçado, um arrepio de raiva e medo; os lábios estavam retraídos, pondo à mostra os dentes, como se ele estivesse prestes a avançar em alguma coisa; além disso, rosnava baixinho. Não deu a mínima para seu dono ou para mim, apenas percorreu, rígido e tenso, o gramado até o portão de ferro. Ficou ali parado um instante, olhando para além da grade, ainda rosnando. Então, de repente, sua coragem pareceu abandoná-lo: soltou um longo uivo e voltou correndo para dentro, todo encolhido.

— Ele faz isso meia dúzia de vezes por dia — disse John. — Vê alguma coisa que odeia e teme ao mesmo tempo.

Fui até o portão e olhei por cima. Alguma coisa se movia na grama do outro lado, e logo ouvi um barulho que não consegui identificar de imediato. Mas não tardei a lembrar: o ronronar de um gato. Risquei um fósforo e vi o ronronante, um grande persa azul, marchando extaticamente em círculos junto ao portão, a cauda erguida como um estandarte. Seus olhos eram claros e brilhantes e, de vez em quando, ele baixava a cabeça e cheirava a grama.

Ri.

— Acho que é o fim do mistério. Temos aqui um grande felino festejando sozinho a noite de Walpurgis.

— Sim, esse é Darius — disse John. — Ele passa metade do dia e a noite toda aí. Mas esse não é o fim do mistério do cachorro, porque Toby e ele são melhores amigos, e sim o começo do mistério do gato. O que faz aí? E por que Darius parece tão contente, enquanto Toby está aterrorizado?

Naquele momento, voltou-me o detalhe verdadeiramente horrível de meus sonhos, quando, ao olhar por cima do portão, exatamente para onde o gato estava agora, via a lápide branca com a sinistra inscrição. Porém, antes que pudesse responder, a chuva caiu, tão repentina e pesada como se tivessem aberto uma torneira, e, ao mesmo tempo, o grande felino se espremeu por entre as grades do portão e veio saltando pelo gramado, buscando abrigo na casa. Ficou sentado no batente, olhando, ansioso, para a escuridão. Bufou e tentou arranhar John quando ele o empurrou para dentro a fim de fechar a porta.

De algum modo, com o retrato de Julia Stone no corredor, o quarto na torre não me causava nenhum alarme e, ao deitar, muito cansado e sonolento, não restava senão o interesse pelo curioso incidente do sangue em nossas mãos e pela conduta do gato e do cachorro. A última coisa que olhei antes de apagar a luz foi o quadrado vazio ao lado da cama, onde estivera pendurado o retrato. Aqui, o papel conservava seu vermelho-escuro original: no restante da parede, ele havia desbotado. Em seguida, apaguei minha vela e caí imediatamente no sono.

Meu despertar foi igualmente instantâneo: sentei-me na cama, rígido, sob a impressão de que uma luz muito forte incidira sobre meu rosto, embora agora estivesse um breu. Eu sabia exatamente onde estava, no quarto que me aterrorizara em sonhos, mas nenhum horror experimentado no sono se comparava ao medo que agora invadia e me congelava o cérebro. No instante seguinte, um trovão estrondou sobre a casa, mas a probabilidade de que apenas um clarão de relâmpago tivesse me acordado não tranquilizou meu coração galopante. Eu sabia que havia alguma coisa no quarto comigo e, instintivamente, estendi a mão direita, que estava mais próxima da parede, para afastar o que quer que fosse. E minha mão tocou a moldura de um quadro pendurado perto de mim.

Pulei da cama, esbarrando na mesinha ao lado, e escutei meu relógio, a vela e os fósforos caírem no chão. Mas não havia necessidade de luz no momento, pois um clarão cegante espocou das nuvens, mostrando-me que, junto à cama, estava novamente pendurado o retrato da sra. Stone. O quarto voltou quase instantaneamente à escuridão; mas aquele clarão revelou também outra coisa, a saber, um vulto inclinado sobre o pé da cama, me olhando. Vestia uma coisa branca e apertada, manchada e bolorenta, e o rosto era aquele do retrato.

Lá em cima, o trovão estalou e rugiu e, quando cessou, seguido de uma quietude de morte, escutei o débil barulho de algo se aproximando e, ainda mais horrível, senti um odor de putrefação. Em seguida, alguma coisa tocou meu pescoço e ouvi, próximo à orelha, uma respiração rápida, ávida. No entanto, eu sabia que aquela coisa, embora pudesse ser percebida pelo tato, pelo olfato, pela visão e pela audição, não era deste mundo, era algo que havia deixado o corpo e tinha o poder de se manifestar. Ela falou, com uma voz que me era familiar:

— Sabia que você viria para o quarto na torre. Há tempo o espero. Finalmente está aqui. Esta noite, matarei minha fome; em breve, nos banquetearemos juntos.

E a respiração rápida se aproximou ainda mais; podia senti-la em meu pescoço.

Nisso, o terror, que parecia ter me paralisado momentaneamente, deu lugar ao instinto selvagem de sobrevivência. Golpeei alucinadamente com braços e pernas; ouvi um guincho animalesco e o baque de alguma coisa macia caindo ao meu lado. Dei alguns passos, quase tropeçando no que quer que estivesse ali, e, por pura sorte, encontrei a maçaneta da porta. Um segundo depois, já havia corrido para o patamar, batendo a porta atrás de mim. Quase ao mesmo tempo, ouvi uma porta se abrir em algum lugar lá embaixo e John Clinton, vela na mão, subiu correndo as escadas.

— O que foi? — perguntou. — Durmo bem embaixo de você e ouvi um barulho como se- Deus do céu, tem sangue no seu ombro.

Fiquei lá, ele me diria depois, balançando de um lado para o outro, branco como papel, o ombro marcado, como se alguém tivesse pousado ali a mão ensanguentada.

— Está lá — falei, apontando. — Ela, você sabe. O retrato também está lá, pendurado no lugar de onde o tiramos.

Nisso, ele riu.

— Meu caro amigo, é só um pesadelo.

Passou por mim e abriu a porta, eu lá, de pé, simplesmente paralisado de terror, incapaz de impedi-lo, incapaz de me mover.

— Caramba! Que cheiro horrível — ele disse.

Em seguida, silêncio; não conseguia mais vê-lo, encoberto que estava pela porta aberta. Voltou no instante seguinte, tão branco quanto eu, e imediatamente a fechou.

— Sim, o retrato está lá — falou — e há uma coisa no chão, uma coisa suja de terra, como aquelas em que sepultam as pessoas. Vem, rápido, vamos sair daqui.

Como desci a escada, mal sei dizer. Abateu-se sobre mim uma tremedeira terrível e uma náusea que era mais do espírito que da carne e, mais de uma vez, ele teve de colocar meus pés nos degraus, todo o tempo lançando olhares de terror e apreensão para o alto da escada. Quando finalmente chegamos a seu quarto, no andar inferior, contei a ele o mesmo que descrevi aqui.

Poucas palavras darão conta do resto; de fato, alguns leitores já terão adivinhado do que se trata caso se lembrem daquela ocorrência inexplicável no cemitério de West Fawley, há cerca de oito anos, quando, por três vezes, tentaram sepultar o corpo de uma mulher que havia cometido suicídio. Em cada uma das ocasiões, o caixão foi encontrado, passados poucos dias, novamente saindo do chão. Após a terceira tentativa, a fim de evitar fofocas, o corpo foi sepultado em outro local, em solo não consagrado. Esse local ficava próximo ao portão de ferro do jardim pertencente à casa onde a mulher vivera. Ela havia se suicidado naquela casa, num quarto no alto da torre. Seu nome era Julia Stone.

Posteriormente, o corpo foi exumado em segredo; o caixão estava cheio de sangue.


Tradução: Rodrigo R. Carmo

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