A janela trancada, de A. C. Benson

A torre de Nort estava localizada em uma funda reentrância dos cômoros. Em tempos antigos, uma via passava por sobre a colina, mas agora é uma trilha verde coberta de mato; a estrada que a sucedeu optou por cruzar uma depressão entre os cumes para poupar os animais de carga. A torre, construída originalmente para proteger a grande estrada, era um edifício simples, forte e de paredes grossas. A ela fora acrescida uma casa apropriadamente modesta onde vivia o jovem sir Mark de Nort em calma e plenitude. Para o sul se estendia a grande floresta de Nort, mas a torre se erguia em um cotovelo do cômoro, protegida do norte pelas altas colinas verdes. Os aldeões tinham um curioso e feio apelido para a torre: torre do Medo. Quase já não era usado, contudo – apenas homens muito velhos o diziam em voz alta, e mesmo assim por descuido –, porquanto desagradava o dono. Sir Mark não chegara ainda aos trinta e começara a dizer que precisava se casar, mas não parecia particularmente apressado em fazê-lo; amava sua vida tranquila e solitária, abundante de caçadas e falcoaria. Morava com ele o primo e herdeiro, Roland Ellice, um sujeito boa-vida e bem-humorado, alguns anos mais velho que sir Mark, que chegara em visita quando o primo se instalava na torre e não encontrara motivo para ir embora. Davam-se bem os dois; sir Mark falava pouco e se agradava de livros e rimas; Roland era diferente, amante do conforto, de vinho e conversa, e encontrava em Mark um bom ouvinte. Mark amava o primo e achava louvável de sua parte ficar e ajudar a trazer vida à casa isolada, já que eram poucos os vizinhos.

Mark, no entanto, não estava de todo satisfeito com a vida simples que levava. Perguntava-se com certa frequência se era assim que queria passar seus dias, como um boi no pasto. Nenhuma razão parecia haver, contudo, para que fosse diferente; poucas pessoas habitavam suas terras e não tinham de que se queixar; ainda assim, Mark lhes invejava, às vezes, os laços e a lida diária. As únicas alternativas eram o exército ou, quem sabe, a corte; mas sir Mark não era soldado, menos ainda cortesão; detestava recepções tediosas e os tempos eram de paz. Então, como amasse a solidão e a quietude, vivia em casa e, de vez em quando, se julgava meio-homem. Era feliz, enfim, à sua maneira, senão por um íntimo anelar.

O que dava à torre sua sinistra reputação era a memória do velho sir James de Nort, avô de Mark, um homem maligno e segredista que vivera em Nort envolto em sombras; expulsara de casa o filho e passara os últimos dias em companhia dos livros e dos próprios segredos, observando as estrelas e traçando em cadernos estranhas cifras. Desde sua morte, o antigo aposento no topo da torrinha, onde encontrara seu medonho fim, permanecia fechado. Uma escada conduzia à portinhola de acesso ao cômodo; lá dentro, quatro janelas olhavam nas quatro direções; mas a que dava para os cômoros estava fechada e vedada por uma grande adufa de carvalho.

Num dia de chuva pesada, Roland, cansado de não ter o que fazer e vexado porque Mark lia sem lhe dar atenção, disse ao primo que pretendia visitar o velho aposento, em que jamais pusera os pés. Mark fechou o livro e, com um sorriso de indulgência para o desassossego de Roland, se levantou, se alongou e tomou a chave; subiram juntos as escadas da torrinha. A chave gemeu na fechadura e, ao abrirem a porta, deram com um cômodo esmaecido de pé-direito alto, teto de madeira e cheirando a umidade. Armários trancados ficavam junto às paredes; uma ampla mesa de carvalho ocupava o centro, com uma cadeira ao lado. Fora isso, as paredes eram nuas e mal-acabadas; aranhas haviam tomado conta dos cantos e das janelas. Roland tinha um monte de perguntas e Mark lhe contou tudo o que sabia a respeito do velho sir James e de seus hábitos reclusos, mas afirmou desconhecer a desgraça que se lhe abatera e os motivos por que seu nome era tão infame. Roland comentou que era uma pena que um quarto tão agradável estivesse naquele estado e abriu uma das janelas; uma forte lufada invadiu o aposento, trazendo consigo tanta chuva que ele rapidamente tornou a fechá-la. Pouco a pouco, enquanto conversavam, sentiram ensombrecer seus espíritos, e coube a Roland declarar que algo maligno ainda pairava sobre o local. Mark lhe contou sobre a morte de sir James: que fora encontrado ao cabo de um dia inteiro de silêncio, quando não colocara o pé fora do quarto, estirado no chão da alcova, estranhamente molhado e sujo de lama, como se tivesse voltado de uma dura jornada, sem fala e com uma expressão angustiada no rosto; que morrera pouco depois de ser encontrado, balbuciando palavras que ninguém entendia. Então se aproximaram, os dois, da janela fechada; as adufas estavam firmemente trancadas e uma mensagem – CLAUDIT ET NEMO APERIT – escrita nos painéis em tinta vermelha e caligrafia trêmula. Segundo Mark, era latim para “Ele fechou e ninguém tornou a abrir”; e dizia a história que coisas ruins aconteceriam a quem abrisse a janela; e sentenciou que, por ele, ela continuaria fechada. Roland fez troça de sua falta de curiosidade e pôs a mão sobre a barra como que para abri-la, mas Mark proibiu veementemente.

— Não — disse ele —, deixe como está; não devemos contrariar a vontade dos mortos! — e, ao dizer esta palavra, uma lufada se abateu com tal furor sobre as janelas que era como se alguma presença tempestuosa tentasse abri-las. Deixaram o quarto e, assim que desceram, descobriram que o sol saía entre as nuvens.

Mas tanto Mark quanto Roland passaram tristes e calados o restante do dia; porque, conquanto não tocassem no assunto, ardia neles o desejo de abrir a janela trancada e ver o que aconteceria. Para Roland, era como a vontade duma criança de espiar o que é proibido; na cabeça de Mark, porém, subjazia uma espécie de vergonha por se ater a uma velha e tola superstição.

Durante vários dias, Mark conservou a impressão de que uma sombra se havia interposto entre eles desde a visita ao quarto na torrinha. Roland andava ansioso e arisco; já em Mark, a curiosidade se acentuava de tal maneira que era como se alguma coisa, uma voz, talvez, ou um aceno, o atraísse ao aposento.

Numa bela manhã ensolarada, Mark descobriu-se sozinho em casa. Roland saíra cedo sem dizer para onde ia. Mark ficou sentado, mais apático que o habitual, acariciando as orelhas de seu grande cão de caça, que, com a cabeça apoiada nos joelhos do dono, o olhava com olhos líquidos e se indagava, decerto, por que Mark não havia saído.

De repente, sir Mark pousou os olhos na chave da torrinha, largada no parapeito da janela onde ele a havia jogado; e a ânsia de ir lá em cima e devassar o coração daquele pequeno mistério se abateu sobre ele com força tal que não havia como resistir. Por duas vezes se levantou, pegou a chave e, depois de manuseá-la, duvidoso, tornou a largá-la; por fim, tomou-a de supetão, dardejou rumo à escada da torrinha e subiu, girando, girando até ficar zonzo, atordoado pela claridade que entrava pelas seteiras. Ora tudo era verde, onde uma janela dava para os cômoros; e ora tudo era sol e ar puro, a brisa cálida invadindo agradavelmente a escadaria fria. Mark não tardou a identificar o som de passos na escadaria abaixo e soube que o velho cão decidira acompanhá-lo; aguardou à porta, satisfeito, em seu estranho estado de espírito, de ter a companhia de um ser vivo. Então, com o cão a seu lado, não protelou mais: abriu a porta e entrou no quarto.

A atmosfera do aposento era estranha e, embora não pudesse dizer por que, Mark sentia que era esperado. Sem hesitar, dirigiu-se à adufa e ficou a estudá-la. Escutou um barulho atrás de si; era o velho cão de caça, que, sentado e com o focinho erguido, farejava o ar, inquieto. Mark o chamou e estendeu a mão, mas o cachorro não se moveu; balançou a cauda, como que em reconhecimento ao chamado, e continuou sua agitada investigação. Logo concluiu que algo não cheirava bem; deitou na soleira com as patas encolhidas sob o corpo e, tremendo visivelmente, voltou para o dono os olhos assustados. Mark, com o coração na mão e como que açodado pelo medo, retirou a grande armela, colocou-a no chão e, de um tranco, abriu as adufas. Antigas e empoeiradas teias de aranha tomavam o espaço ali revelado; Mark, fazendo uso da armela, removeu-as facilmente. Para sua surpresa, constatou que as vidraças estavam escuras, ou quase; havia, aparentemente, algum anteparo do lado de fora; no entanto, ao pé da torre, era possível ver as folhas chumbadas da janela, e Mark sabia. Hesitou um instante, mas, incapaz de conter a própria curiosidade, abriu de um tranco os caixilhos enferrujados. Do lado de fora, continuava tudo escuro; entrou uma rajada de ar frio, como se alguma coisa passasse ventando por ele, e o velho cão de caça deixou escapar um uivo estrangulado. Voltando-se, Mark viu o cachorro se levantar de um salto, com o pelo eriçado e os dentes à mostra; ato contínuo, se virou e saiu correndo.

Mark, sozinho, tentou refrear uma onda de horror que varria suas veias. Olhou em volta para o quarto iluminado, depois tornou à janela escura e, evocando toda a sua coragem, se debruçou sobre o peitoril; o que viu o deixou tão desconcertado que, por um momento, pensou ter perdido o juízo. Olhava para uma encosta solitária e mal iluminada, coberta de rochas e pedras; a encosta subia até perto da janela, de modo que dava para saltar sobre ela; a parede da torre se confundia com as rochas. Tudo era escuro e silencioso, como uma noite de céu nublado, com uma claridade tíbia cuja origem ele não conseguia identificar. A encosta era bastante íngreme; ao longe, pensava vislumbrar uma planície, embora soubesse que ali deveriam estar os cômoros. Havia uma luz na planície, como de uma lareira vista pela janela duma casa. Pouco abaixo de Mark, um vulto semelhante a um homem agachado parecia correr e deslizar entre as pedras, como tivesse sido surpreendido e tentasse escapar. Ao medo mortal que começava a invadir seu coração se juntava uma incontrolável vontade de pular a janela e descer até as rochas; pareceu-lhe, pois, que a figura abaixo se empertigava e acenava para ele, chamando-o. Foi assaltado pela sensação de enorme e iminente perigo; então, qual um homem à beira dum precipício, mobilizando os últimos grãos de vontade na tentativa de escapar, se obrigou a fechar a janela, repôs as adufas, recolocou a armela e, tremendo da cabeça aos pés, se arrastou para fora do aposento, apoiando-se nas paredes como um inválido. Trancou a porta e, ato contínuo, desceu às pressas, apavorado, a escada da torre. Mal dando conta de si, saiu para o pátio, correu até o grande poço e atirou nele a chave, ouvindo-a tinir nas laterais ao cair. Mesmo assim, não ousou entrar em casa, olhava para cima e para baixo e em toda a sua volta, enquanto a nuvem de medo e horror se dissipava pouco a pouco, deixando-o fraco e melancólico.

Roland não tardou a chegar, falando pelos cotovelos, mas parou para perguntar se Mark estava doente. Mark, com mau humor incomum, respondeu um tanto rispidamente que não. Roland ergueu os sobrolhos e mudou de assunto, mas continuou tagarelando. Em seguida, depois de um breve silêncio, indagou:

— E você, fez o que a manhã toda? — e pareceu a Mark que a pergunta vinha acompanhada de um olhar inquisitivo. Foi tomado de uma fúria irracional.

— O que lhe importa o que eu fiz? — falou. — Tenho de dar satisfações sobre o que faço em minha própria casa?

— Claro que não — respondeu Roland, e ficou em silêncio, sobrancelhas erguidas; depois começou a cantarolar e, sem demora, saiu.

Sentaram-se para jantar aquela noite em meio a longos silêncios, contrariando o habitual, embora Mark se empenhasse em fazer perguntas. Quando ficaram a sós, Mark estendeu a mão para o primo, dizendo:

— Roland, perdoe-me! Estou envergonhado pela maneira como lhe falei esta manhã; moramos juntos há tanto tempo… e hoje, chegamos mais perto de nos desentendermos que em qualquer outro momento; e a culpa foi toda minha.

Roland sorriu e apertou a mão de Mark.

— Ah, eu já tinha até esquecido — falou. — Surpreendente é você aguentar um come e dorme como eu.

A conversa prosseguiu com aquela exultante camaradagem dos amigos reconciliados. Mais tarde, naquela mesma noite, Roland perguntou:

— Você conhece alguma história, Mark, sobre um tesouro que seu avô teria escondido?

A pergunta teve um efeito deletério no humor de Mark, que se controlou, porém, e disse:

— Não, não sei de nada… exceto que ele recebeu a propriedade rica e a deixou pobre… e o que fez com o dinheiro ninguém sabe… é melhor perguntar aos anciãos da aldeia; eles sabem mais sobre a casa do que eu. Roland, peço novamente seu perdão, mas gostaria que não voltasse a mencionar o nome de sir James. Queria que não tivéssemos entrado naquele quarto; não sei como explicar, mas minha impressão é de que ele permaneceu lá todo esse tempo, esperando calmamente que alguém o fosse buscar, e é como se o tivéssemos perturbado e… e ele estivesse aqui agora, conosco. Acho que era um homem mau, fechado e mau. E não sai da minha cabeça uma passagem das escrituras em que Samuel diz à bruxa: “Por que me perturbaste, fazendo-me subir?”… Ah — deteve-se —, não sei por que falo essas coisas — pois notou que Roland o olhava espantado, de boca aberta —, mas uma sombra desceu sobre mim e o mal parece estar em toda parte.

Daquele dia em diante, um peso se instalou no espírito de Mark que nada podia aliviar. Sentia, conforme disse a si mesmo, como se tivesse lidado de modo leviano com algo muito mais profundo e perigoso do que supusera – como uma criança que acordasse de seu sono alguma fera maligna. Tinha pesadelos, também. O vulto que vira entre as rochas parecia espreitar e acenar para ele com um sorriso zombeteiro, convidando-o a lugares perigosos aonde ele não queria ir. Porém, quanto mais macambúzio ele ficava, mais despreocupado se tornava Roland, que parecia viver num mundo só seu, concentrado num grande e portentoso projeto.

Um dia, adentrou o salão pela manhã com aparência tão radiante que Mark, com uma ponta de inveja, lhe perguntou qual era o motivo de tanta alegria.

— Alegria — disse Roland. — Ah, já sei! Sonhos agradáveis, suponho. Que tal isto: um sujeito muito solene me acena, com um sorriso no rosto, e me conduz a lugares maravilhosos, grotas e covas na floresta, onde há muitas riquezas acumuladas? Algo de bom está para me acontecer, Mark, tenho certeza… e você há de compartilhar disso.

Mark, percebendo nas palavras do primo certa similaridade – e uma notável diferença – com suas próprias visões sombrias, apertou os lábios e se sentou, o olhar pétreo voltado para a frente.

Por fim, numa calma noite primaveril, com uma atmosfera intoleravelmente lânguida e abafada para os seres humanos, mas cheia de doces promessas para as árvores e coisas espreitantes, ainda que uma lúrida vermelhidão de tempestade pairasse desde cedo entre as nuvens pesadas, jantavam Mark e Roland. Mark caminhara sozinho durante o dia e se deitara na relva dos cômoros, lutando contra um cansaço que parecia envenenar as próprias fontes de vida dentro dele. Já Roland estivera ativo e alerta, correndo para cima e para baixo nalguma missão importante e secreta, um pedaço de canção nos lábios, como alguém que se prepara para viajar a um país distante e não vê a hora de partir. À noite, depois da janta, Roland deu asas a suas fantasias.

— Se fôssemos ricos — falou —, imagine o que poderíamos fazer com este velho lugar!

— Parece-me bom como está — respondeu Mark duramente. Roland, depois de censurá-lo de forma bem-humorada por sua rabugice, continuou a esboçar projetos de vida.

Mark, a um só tempo cansado e agitado, com um ânimo intoleravelmente pesado, foi cedo para a cama, deixando Roland no salão. Despertou de um sono curto e espasmódico e, acendendo uma vela, buscou um livro para ajudar a passar o tempo. Ruídos estranhos pareciam povoar a casa naquela noite. Uma ou duas vezes, ouviu raspaduras e leves marteladas na parede; passos furtivos pareciam soar na torrinha – mas a torre sempre fora cheia de ruídos, e Mark os ignorou. Adormeceu, afinal, e foi subitamente acordado por um grito estranho e desolado; não sabia de onde vinha, mas era como se pairasse, ululante, no próprio ar. O velho cão de caça, que dormia no quarto de Mark, ouviu também e se sentou, em temerosa expectativa. Mark levantou apressado e, tomando a vela, saiu para o corredor que conduzia ao quarto de Roland. O aposento estava vazio e a cama não fora desfeita. Com um horrível pressentimento, Mark retornou e subiu às carreiras a escada da torrinha, medo e ansiedade se confundindo em sua cabeça. Chegando ao topo, encontrou a portinhola arrombada e uma luz acesa no cômodo. Percorreu o aposento com olhar aflito; nisso o grito se repetiu, muito fraco e longínquo desta vez.

Mark olhou assustado para a janela; estava escancarada e mostrava uma horrível escuridão líquida. Notou alguma coisa amarrada na barra central que dividia os caixilhos; correu até a janela e viu que era uma corda. Debruçou-se e teve a certeza de que alguma coisa pendia dela – então ouviu novamente o grito, vindo da escuridão como o lamento de uma alma penada.

Via, como num pesadelo, os contornos da odiosa encosta; mas parecia à sua imaginação febril haver abaixo um tumulto de alguma espécie; luzes pálidas se moviam de um lado a outro, e percebeu formas agrupadas que se dispersaram como um cardume quando ele se debruçou. Presenciava, ele sabia, uma cena vedada a olhos mortais e lhe pareceu naquele momento que contemplava as próprias profundezas do inferno.

A corda descia em meio às rochas e desaparecia; mas Mark a segurou firme e, mobilizando toda a sua força, que não era pouca, puxou, puxou, puxou; e, no que recolhia a corda, contornava a grande mesa de carvalho, usando-a como poste de amarração. Começou a duvidar que sua força fosse suficiente e, uma vez, ao retornar à janela depois de contornar a mesa, algo grande e encapuzado qual um pássaro se aproximou silenciosamente da janela e bateu as asas.

Via agora que o vulto pendurado na corda havia se desvencilhado das rochas; passara através delas como fossem fumaça; então sua tarefa lhe pareceu mais árdua que nunca. Dolorosamente, centímetro a centímetro, ele o puxou, labutando cruel e silenciosamente; seus músculos estavam tesos, suor brotava da testa, o sangue martelava nos ouvidos, sua respiração era entrecortada. Finalmente, o vulto estava próximo o bastante para que ele o alcançasse; agarrou-o pela cintura e puxou Roland, pois era Roland, por sobre o peitoril. Sua cabeça pendia e vacilava de um lado para o outro; o rosto estava sujo de sangue pisado e os membros, frouxos. Mark puxou a faca e cortou a corda, que o cingia por baixo dos braços; o corpo imóvel afundou no chão como um saco vazio. Então, ao erguer os olhos, Mark viu na janela, a uns poucos centímetros, um rosto pavoroso, mais horrendo do que julgaria possível num ser humano (se é que humano fosse). Era mortalmente branco, e ódio, ira frustrada e uma espécie de diabólica malevolência emanavam dos olhos fitos e leitosos e dos lábios crispados. Escutou movimento atrás de si; com um rosnado feroz, o velho cão de caça, que entrara despercebido no quarto, avançou sobre o peitoril; Mark ouviu suas unhas arranharem a pedra. Então o cachorro saltou pela janela e, quase no mesmo instante, ouviu-se o forte baque de algo caindo do lado de fora. Ato contínuo, a escuridão pareceu levantar como uma nuvem; um manto de trevas foi alçado da janela, restando o escuro contorno dos cômoros e um céu salpicado de estrelas tranquilas.

A nuvem de medo e horror que pairava sobre Mark também se dissipou: sentiu, de alguma obscura maneira, que seu adversário fora vencido. Carregou Roland pelas escadas até a cama; acordou o caseiro, que o olhou assustado; depois, em seu quarto, perdeu as forças e foi engolido pela túrbida maré da inconsciência, desabando no chão.

A recuperação de Mark foi lenta. Depois de encarar o desconhecido, é difícil acreditar novamente nas manifestações exotéricas da vida. Suas primeiras palavras foram para perguntar pelo cachorro; disseram-lhe que havia sido encontrado ao pé da torre horrivelmente mutilado, como que por algum animal selvagem. O cão foi enterrado no jardim e, na laje que cobria o túmulo, foram gravadas as seguintes palavras:

EUGE SERVE BONE ET FIDELIS

Um infeliz sacerdote disse a Mark certa vez que era inapropriado apor as escrituras no túmulo de um animal. Mark, porém, retorquiu ponderadamente que um epitáfio é para quem o lê, para pregar humildade, não para alimentar o orgulho de quem jaz sepultado.

Quando pôde enfim se levantar, a primeira coisa que fez Mark foi mandar virem alveneiros para demolir, pedra por pedra, a velha torre de Nort, e em seu lugar foi construída uma formosa capela. Da câmara superior, uma escada oculta na parede conduzia até uma saída em meio aos sabugueiros que cresciam embaixo da torre; ali encontraram um baú cheio de ouro que pagou pela igreja; porque, até então, a ideia de Mark era deixar vago o lugar.

Mark, hoje, tem esposa e filhos; aqueles que o visitam em casa encontram um homem estranho e abatido que senta à mesa da família e é tratado com grande estima. Este homem, em seus momentos de alegria, conta uma longa história sobre ser conduzido por uma pessoa alta, bela e sorridente pela encosta de uma colina em busca de ouro; mas ele nunca lembra como termina a história. Porém, quando chega a primavera, ele fica calado ou cochicha de si para si. Este homem é Roland; seu espírito parece enclausurado nalgum lugar e Mark ora por sua libertação; mas até que Deus se resolva a chamá-lo, ele o trata como um irmão querido e com a reverência devida a alguém que olhou do outro lado da morte e não pode contar o que viu.


Tradução: Rodrigo R. Carmo

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