A vestimenta do deus de pedra, de A. Merritt

Esta é a história do professor James Marston. Foi levada a diversas instituições de saber que, depois de o ouvirem respeitosamente, lamentavam, em privado, que homem tão brilhante padecesse de tal obsessão. Ouvi a história em São Francisco, pouco antes de o professor partir em busca da ilha onde está localizado seu tanque do deus de pedra e… as asas que o guardam. Ele me pareceu perfeitamente são. Verdade que os equipamentos de sua expedição eram incomuns, a começar pelas vestimentas de fina cota de malha, as máscaras e manoplas fornecidas a todos os membros da equipe.


— Estávamos os cinco — começou o professor Marston — sentados lado a lado na praia: Wilkinson, o imediato, Bates e Cassidy, os dois marujos, Waters, o pescador de pérolas, e eu. Seguíamos para a Nova Guiné, eu com o propósito de estudar os fósseis para o Smithsonian. A Moranus colidira com um baixio na noite anterior e fora rapidamente a pique. Àquela altura, estávamos, numa estimativa grosseira, cerca de 800 quilômetros a nordeste da costa guineense. Os cinco havíamos conseguido baixar um bote salva-vidas e escapar. O bote estava bem provisionado de água e rações. Não sabíamos se mais alguém da tripulação havia se salvado. Avistamos a ilha ao amanhecer e nos dirigimos para lá. O bote chegou em segurança à praia.

“— Melhor fazermos um reconhecimento — disse Waters. — Este pode ser o lugar perfeito para esperarmos resgate. Pelo menos até passar a temporada de tufões. Estamos armados. Vamos começar seguindo esse riacho até a nascente, daremos uma olhada por aí e depois decidiremos o que fazer.

“As árvores começaram a esparsar. Vimos uma clareira adiante. Ao nos aproximarmos, paramos, surpresos. A área formava um quadrado perfeito com cerca de 150 metros de lado. O corte entre a mata e a clareira era abrupto, como se alguma coisa invisível rechaçasse as árvores.

“Mas não foi essa impressão particular que nos deixou imóveis. Do outro lado do quadrado havia uma dúzia de cabanas de pedra em torno de um edifício ligeiramente maior. Lembravam muitíssimo as estruturas pré-históricas encontradas em partes da Inglaterra e da França. Chego agora ao elemento mais curioso nesse lugar curioso e sinistro de todo. No centro daquela clareira havia um tanque de água cercado por enormes blocos de pedra talhada. Ao lado do tanque ficava uma grande estátua de pedra, esculpida à semelhança de um homem com as mãos estendidas. Tinha pelo menos seis metros de altura e era extremamente bem-feita. À distância, a estátua parecia nua; ao mesmo tempo, havia nela um peculiar efeito de drapeamento. Mais de perto, vimos que estava coberta, dos tornozelos ao pescoço, por asas do mais extraordinário apuro. Tinham a exata aparência de asas de morcego fechadas.

“Havia alguma coisa extremamente inquietante naquela imagem. O rosto era indescritivelmente feio e maligno. Os olhos eram oblíquos, diabólicos. Não era do rosto, porém, que parecia emanar aquela sensação. Era do corpo coberto pelas asas – e das asas, principalmente. Faziam parte do ídolo e, ao mesmo tempo, passavam a ideia de estar grudadas nele.

“Cassidy, um sujeito abrutalhado, caminhou até o ídolo, afetando coragem, e o tocou. Recolheu a mão rapidamente, o rosto lívido, os lábios contraídos. Aproximei-me da imagem e, controlando meu asco nada científico, examinei a pedra. Era, a exemplo das cabanas e de tudo o mais ali, claramente obra daquela raça esquecida cujos monumentos estão espalhados pelo sul do Pacífico. As asas eram um primor: quirópteras, como eu disse, dobradas, terminavam, cada uma delas, em um pequeno anel de penas estilizadas. Seu tamanho variava entre dez e 25 centímetros. Toquei uma com a ponta dos dedos. Uma náusea sem igual me acometeu e me pôs de joelhos diante do ídolo. A sensação era de pedra polida e fria; porém, por trás da pedra, havia a impressão de alguma criatura monstruosa e obscena de uma realidade inferior. Obviamente, a sensação decorria, racionalizei, da temperatura e da textura única da pedra — mas essa explicação não me satisfez realmente.

“Começou a escurecer. Decidimos voltar para a praia e retomar o exame da clareira pela manhã. Eu estava ansioso por investigar as cabanas de pedra.

“Retornamos à floresta. Pouco havíamos caminhado quando a noite caiu. Perdemos o riacho. Depois de meia-hora perambulando, voltamos a encontrá-lo. Seguimos o barulho. As árvores começaram a se abrir e pensamos estar perto da praia. Então Waters agarrou meu braço. Parei. Mais adiante, na clareira, o deus de pedra nos observava à luz da lua, as águas esverdeadas reluzindo a seus pés!

“Havíamos andado em círculo. Bates e Wilkinson estavam exaustos. Cassidy afirmou que, com ou sem diabos, acamparia ao lado do tanque aquela noite!

“O luar era bastante intenso. O silêncio, fora do comum. Fui vencido por minha curiosidade científica e resolvi investigar as cabanas. Deixei Bates de guarda e caminhei até o edifício maior. Havia apenas um cômodo e o luar que entrava pelas frestas o iluminava perfeitamente. Na parede dos fundos havia duas pequenas bacias embutidas na pedra. Olhei dentro de uma delas e vi um tênue brilho avermelhado refletindo em vários objetos esféricos. Peguei um punhado. Eram pérolas, pérolas de aparência maravilhosa e um peculiar matiz rosado. Corri até a porta para chamar Bates… e estaquei!

“Meus olhos recaíram sobre o ídolo de pedra. Seria efeito do luar ou estava se movendo? Não, eram as asas! Desprendiam-se da pedra e ondulavam… ondulavam, eu digo, dos tornozelos ao pescoço daquela monstruosa estátua.

“Bates também percebera. Havia sacado a pistola. De repente, um tiro. Em seguida, o ar se encheu de um barulho como que de mil hélices girando. Vi as asas se desprenderem do deus de pedra e avançarem como um enxame sobre os quatro homens. Outra nuvem emergiu do tanque e se juntou a elas. Não conseguia me mexer. As asas os circundavam velozmente, açodando-os por todos os lados. Estavam agora os quatro de pé, e nunca vi tanto horror quanto o que percebia em seus rostos.

“Então as asas cerraram sobre eles. Grudaram-se em meus companheiros como antes haviam aderido à pedra.

“Recuei para o fundo da cabana. Fiquei lá a noite inteira, em um terror insano. Várias vezes ouvi o som helicoidal a rodear o abrigo, mas nada entrou na minha cabana. Veio a manhã e, com ela, o silêncio; me arrastei até a porta. Lá estava o deus de pedra, coberto pelas asas esculpidas, tal como o havíamos visto dez horas antes!

“Corri até os quatro estirados na grama. Pensei que, talvez, eu tivesse tido um pesadelo. Mas estavam mortos. E o que é pior: só restava deles pele e osso! Pareciam balões murchos. Não tinham uma gota de sangue sequer. Eram meros esqueletos em invólucros de pele!

“Controlei meus nervos e me aproximei do ídolo. Havia algo diferente nele. Parecia maior… como se, a ideia me passou pela cabeça, como se estivesse empanzinado. Então percebi sobre a estátua gotículas de sangue que pingavam das pontas das asas que a recobriam!

“Não lembro o que aconteceu depois. Acordei na escuna peroleira Luana, que me havia resgatado – louco de sede, segundo pensaram – do bote da Moranus.”


Tradução: Rodrigo R. Carmo

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