O cão preto, de Stephen Crane

Trovoava sem parar e pesadas gotas de chuva tamborilavam nos loureiros, nos emaranhados de musgo e nas batidas rochas abaixo. Quatro homens encharcados tentavam desembrenhar-se da floresta diluviosa. O baixinho parou e apontou um dedo irritado para a noite que os perseguia sorrateiramente.

— Maldito seja o destino e seus filhos, e os filhos de seus filhos! Estamos irremediavelmente perdidos! — exclamou. A procissão ofegante pausou sob o pinga-pinga de algumas cicutas e praguejou em irada perplexidade.

— Vai chover por quarenta dias e quarenta noites — queixou-se o gorducho —, e já estou que só pão molhado. Até sairmos desta selva, já terei virado papa.

Desesperados, retomaram a marcha, arrastando-se fracamente em meio aos arbustos molhados. Depois de algum tempo, as nuvens dispersaram e fortes ventos, deixando seu refúgio, saíram para brincar entre as árvores. A noite também se achegou e ameaçou com escuridão os andarilhos. O baixinho tinha determinação nas pernas. Enfiou-se por entre as moitas e tentou desesperadamente encontrar uma trilha ou estrada. Ao subir uma colina, deu com uma pequena clareira desolada onde uma casa venerável era pranteada por um pinhal sacudido pelo vento.

— Ei — gritou —, uma casa.

Seus companheiros, atrás dele, renhiam dolorosamente contra as moitas que os separavam da cabana. Ao se aproximarem, o vento, frenético, opôs-se-lhes e uivou alucinado nas árvores. O baixinho enfrentou corajosamente os sinistros olhares lançados pelas frestas da cabana e bateu à porta. Um bocado de tábuas gemeu em resposta e, lá dentro, alguma coisa caiu, retinindo.

— Ei — disse o baixinho. Recuou alguns passos.

Em algum lugar distante, alguém se levantou e, com passos ominosos, se aproximou da porta. Um sujeito cor de ardósia apareceu. Vestia uma camisa esfarrapada e calças enfiadas nas botas. Grandes lágrimas rolavam dos olhos.

— Cumé que vai, amigo? — disse, afável, o baixinho.

— Meu velho tio, Jim Crocker, tá mui’doente — replicou o sujeito cor de ardósia.

— Ei — disse o baixinho. — É mesmo?

As roupas do baixinho se agarravam aflitivamente ao corpo e as botas estavam cheias d’água. Esperou pacientemente trocando os pés.

— Podemos pernoitar aqui? — perguntou finalmente.

— Sim — respondeu o homem cor de ardósia.

O grupo ingressou numa saleta miserável habitada por um fogareiro, uma escada, algumas cadeiras precárias e uma mesa disforme.

— Vô fritá umas tiras de porco e passá um café — disse aos hóspedes o homem cor de ardósia.

— Vá em frente, meu velho — exclamou de seu lugar à mesa o baixinho, que, contente, pitava o cachimbo e balançava as pernas.

— Meu velho tio, Jim Crocker, tá mui’doente — disse o homem cor de ardósia.

— Acha que vai morrer? — perguntou gentilmente o gorducho.

— Não!

— Não?

— Ele num vai morrê! Está véi, ma’inda num vai morrê! O cão preto inda num chegô!

— Cão preto? — ecoou fracamente o baixinho. Debateu-se um instante contra si mesmo. — Que cão preto? — perguntou, afinal.

— É um esp’rito — disse, em tom sombrio, o homem cor de ardósia.

— Ah, é? E daí?

— Ele assombra aqui essas bandas, é, e quando as pessoas tão pra morrê, ele vem e uiva.

— Ei — disse o baixinho. Olhou pela janela e viu a noite se multiplicando em um milhão de sombras.

O baixinho mexia nervosamente as pernas.

— Não acredito nessas coisas — falou, dirigindo-se ao homem cor de ardósia, que brigava com um pedaço de carne de porco.

— Que coisas? — disse, sem coerência, o combatente.

— Ah, esses, hã, fantasmas e espíritos e o que mais. Para mim, é tudo asneira.

— Isso porque você não tem alma, só estômago — grunhiu o gorducho.

— Ei, velho sapudo! — replicou o baixinho. Suas costas se curvaram de raiva. O olho do gorducho chispou de ira. O último epíteto empregado pelo baixinho era um insulto muito bem deliberado e sempre mobilizado em tempos de crise. Brigaram.

— Tudo bem, sapudo, vamos ver esse seu fantasma — gritou, em conclusão, o baixinho.

A ira de seu companheiro troncudo era grande demais para traduzir em palavras. O baixinho sorriu, triunfante. Havia posto em dúvida a reputação de seu oponente.

As visitas silenciaram. O homem cor de ardósia zanzava numa atmosfera pessoal de pessimismo.

De repente, um gemido estranho lhes chegou aos ouvidos, vindo não sabiam de onde. Era um chamado fraco e arrastado que fez o baixinho tremer na base. O homem cor de ardósia galgou a escada e, num lampejo de pernas, desapareceu por um buraco no teto. O grupo ouviu duas vozes conversando: uma pertencente ao homem cor de ardósia, a outra nos frágeis tons da velhice. O homem cor de ardósia desceu imediatamente, dizendo:

— O véi qué a janta dele.

Preparou rapidamente uma mistura com água quente, sal e carne. Chá de músculo, poderíamos dizer. Desapareceu novamente. O grupo tornou a ouvir falação indistinta acima de suas cabeças. A voz de idade elevou-se num grito.

— Abra a janela, idiota! Acha que aguento o cheiro da sua sopa?

Ouviram o homem cor de ardósia balbuciar alguma coisa e uma janela se abrir, rangendo.

O homem cor de ardósia desceu aos tropeções e, com grande tristeza, anunciou:

— Num tarda o cão preto.

O baixinho deu um pulo e o gorducho zombou dele. Depois de jantar, ficaram à espera. A expectativa do gorducho era tanta que o baixinho queria matá-lo. Atiçada, a lenha no fogareiro crepitava freneticamente. Lá fora, presos aos galhos dos pinheiros, centenas de espíritos eólicos suplicavam humildemente por liberdade. O homem cor de ardósia, na ponta dos pés, cruzou a sala e acendeu uma vela tímida. Sentados, esperavam.

Mais abaixo na estrada, junto à parede de um velho casebre, o cão fantasma dormia aconchegado a uma trouxinha redonda. O dono do espectro se mudara para o condado de Pike. Mas o cão, como quem se demora no túmulo de um amigo, permanecera. Seu pelo era como um terno velho. A mandíbula, frouxa, deixava à mostra os dentes. Os olhos eram de um amarelo esfaimado. O casebre, açoitado pelo vento, gemia e resmungava, mas o cão dormia. De repente, porém, levantou-se e bambeou até a estrada. Os olhos famintos e desesperados lançaram um olhar comprido em direção à casa venerável. A brisa encheu-lhe as narinas. Erguendo a cabeça, soltou um longo, longo uivo e começou a subir, resoluto, a estrada. Havia sentido, talvez, cheiro de defunto.

O grupo em volta do fogo na casa venerável escutava e esperava. A atmosfera da sala era tensa. O homem cor de ardósia, rosto contorcido, apertava as mãos desbotadas. O baixinho olhava o tempo todo para trás. A expressão do gorducho misturava orgulho pelo iminente triunfo sobre o baixinho com receio pelo próprio bem-estar. Cinco cachimbos ardiam, rivalizando com a vela tímida. Silêncio profundo se abateu, pesado, sobre eles. Finalmente, o homem cor de ardósia falou:

— Meu velho tio, Jim Crocker, tá mui’doente.

Os quatro se sobressaltaram, depois tornaram a se encolher nas cadeiras.

— Droga! — replicou vagamente o baixinho.

Novamente, um longo silêncio. Subitamente quebrado por um grito desatinado vindo do quarto acima. O urro os atingiu com a espantosa rapidez de um raio. As paredes giraram e o chão retumbou. Os visitantes rapidamente se amontoaram, fitando os rostos apavorados uns dos outros. O homem cor de ardósia agarrou a vela e a levantou acima da cabeça.

— O cão preto — gemeu, e disparou pela escada. Os quatro, ensandecidos, correram atrás dele, porque pior do que estar na presença do inominável é tê-lo ao alcance dos ouvidos.

Com o urro ainda reverberando nos tímpanos, enfiaram-se pelo buraco no teto e caíram no quarto do enfermo.

Puxando as colchas junto ao peito encolhido como fosse um escudo e agarrando a coberta com a mão ossuda, um velho deitado fitava com olhos vidrados a janela aberta. A garganta gorgolejava e espuma descia pelo canto da boca.

Da escuridão lá fora vinha um lamento estranho e desnatural que carregava o peso da morte, cada nota prenhe de agouro. Era a canção do cão espectral.

— Deus! — berrou o baixinho. Correu para a janela aberta. De início, nada viu senão os pinheiros, que, engajados em furioso combate, sacolejavam e se debatiam. A lua espiava cautelosamente pelos cantos de nuvens escuras. Mas a litania do fantasma guiou os olhos do baixinho e ele acabou por divisar seu vulto sombrio embaixo da janela. Recuou, arfando, diante da visagem. O gorducho se agachou num canto, batendo insanamente o queixo. O homem cor de ardósia, apavorado, enlaçara as pernas e parecia um horrendo ídolo chinês. O homem na cama ficou petrificado, salvo pela espuma, que pulsava.

Num derradeiro esforço, o terror há de enfrentar o inevitável. O baixinho, rugindo maníacas imprecações, correu para a janela e começou a jogar no espectro o que estivesse à mão.

Uma caneca, um prato, uma faca, um garfo, tudo estrondou ou retiniu contra o chão, mas a canção do espectro continuava. Seguiu-se a tigela com o chá de músculo. Quando atingiu o solo, o lamento do fantasma cessou.

Os homens no cômodo se encolhiam, frouxos, contra a parede, o lamento sobrenatural ainda ecoando em seus ouvidos, o medo intacto em seus olhos. Novamente, esperavam.

O baixinho sentiu os nervos vibrarem. Antes a destruição que espera renovada. Catou uma vela e, chegando-se à janela, ergueu a luz acima da cabeça e olhou para fora.

— Ei! — falou.

Seus companheiros se arrastaram até a janela e espiaram com ele.

— Está comendo o chá de músculo — disse o baixinho ao gorducho.

— O maldito cachorro estava com fome — constatou o gorducho.

— Olha aí o seu fantasma — disse o baixinho ao gorducho.

Na cama, o velho estava morto. Lá fora, o espectro abanava o rabo.


Tradução: Rodrigo R. Carmo

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