O homem invisível | parte II

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— Não, nunca escreveu — respondeu a moça depois de breve hesitação. — A primeira carta de Smythe dizia simplesmente que ele havia partido para Londres em companhia de Welkin; porém, como Welkin caminhasse rápido, o baixinho ficou para trás e parou para descansar à beira da estrada. Uma trupe itinerante lhe ofereceu carona e ele, em parte por ser quase anão, em parte por ser um patifezinho realmente muito esperto, acabou se dando bem no ramo do entretenimento e logo foi mandado para o Aquarium para apresentar um número de que já não me lembro. Essa foi a primeira carta. A segunda, que chegou na semana passada, era ainda mais surpreendente.

O homem chamado Angus terminou a xícara de café e fitou a moça com olhar terno e paciente. Ela, ao prosseguir, torcia ligeiramente os lábios num quase sorriso.

— Suponho que tenha visto os cartazes promovendo esse tal Serviço Silencioso de Smythe? Se não viu, deve ser o único. Não sei muito a respeito, é algum invento mecânico que promete realizar automaticamente o serviço doméstico. Sabe como é: “Aperte um botão, um mordomo que não bebe”; “Acione uma alavanca, dez empregadas que não coqueteiam”. Você deve ter visto os anúncios. Bem, o que quer que sejam essas máquinas, estão fazendo rios de dinheiro; e esses rios correm direto para o bolso do duendezinho que conheci em Ludbury. Não posso deixar de me alegrar por ele, de ficar feliz com seu êxito; mas a verdade é que estou aterrorizada que ele apareça de repente e diga que conquistou seu lugar no mundo… o que certamente fez.

— E o outro sujeito? — repetiu Angus com uma espécie de tranquilidade obstinada.

Laura Hope levantou-se de supetão.

— Meu amigo — falou —, você deve ser bruxo. Sim, é isso mesmo. Não recebi uma linha sequer do outro sujeito; e não faço a menor ideia de onde está ou do que está fazendo. Mas é dele que tenho medo. É ele quem atravanca meu caminho. É ele quem está quase me deixando louca. Não, acho mesmo que já me deixou louca; porque senti sua presença onde ele não poderia estar e ouvi sua voz quando não poderia ter se pronunciado.

— Bem, minha querida — disse alegremente o moço —, mesmo que ele fosse Satanás em pessoa, estaria perdido agora que você contou a alguém. Sozinhos, enlouquecemos, minha menina. Mas quando foi que você imaginou sentir a presença ou escutar a voz de nosso amigo estrábico?

— Escutei a risada de James Welkin tão claramente quanto escuto sua voz agora — disse a moça com firmeza. — Não havia ninguém por perto; eu estava na esquina, em frente à loja, e podia ver as duas ruas ao mesmo tempo. Eu tinha esquecido como era a risada dele, embora fosse tão esquisita quanto seu estrabismo. Não pensava nele havia quase um ano. Mas é a pura verdade que, segundos depois, chegou a primeira carta de seu rival.

— E você alguma vez fez o espectro falar, chiar ou algo do tipo? — perguntou Angus com algum interesse.

Laura sentiu um calafrio repentino; depois, numa voz inabalada, disse:

— Sim. Logo depois que terminei de ler a segunda carta de Isidore Smythe, anunciando seu sucesso. Naquele exato momento, ouvi Welkin dizer: “No entanto, ele jamais a terá”. Foi muito claro, como se ele estivesse ao meu lado. É horrível; devo estar louca.

— Se estivesse mesmo louca — socorreu o rapaz —, pensaria estar sã. De todo modo, parece realmente haver algo um tanto suspeito nesse cavalheiro que não se vê. Duas cabeças pensam melhor do que uma… vou poupá-la de alusões a quaisquer outros órgãos… e, realmente, se me permitir, na condição de homem determinado e pragmático, trazer de volta o bolo de casamento que está na vitrine…

No que falava, um som estridente e acerado veio da rua e um carrinho guiado a uma velocidade diabólica chegou zunindo e parou na porta da loja. Numa fração de segundo, já estava na confeitaria, batendo impacientemente o pé, um homenzinho de cartola reluzente.

Angus, que até então conservara, por motivos de higiene mental, uma bem-humorada tranquilidade, deu a conhecer a tensão em seu espírito ao passar abruptamente e a passos largos para a antessala e confrontar o recém-chegado. Bastou uma olhadela para confirmar suas tresloucadas conjecturas de homem apaixonado. Aquela diminuta e mui elegante figura, de barba preta apontada insolentemente para a frente, de olhos inquietos e perspicazes, de dedos benfeitos e muito nervosos, não podia ser outro senão Isidore Smythe, que fazia bonecas com casca de banana e caixas de fósforo; Isidore Smythe, que fazia milhões com mordomos que não bebem e criadas de metal que não coqueteiam. Por um instante, os homens, compreendendo instintivamente o ar possessivo um do outro, se entreolharam com aquela curiosa e fria generosidade que é a alma da rivalidade.

O senhor Smythe, contudo, sem aludir ao motivo último do antagonismo entre eles, inquiriu simples e explosivamente:

— Por acaso a senhorita Hope viu aquilo na vitrine?

— Na vitrine? — repetiu Angus, fito.

— Não há tempo para mais explicações — atalhou o pequeno milionário. — Há algo de torpe aqui que precisa ser investigado.

Apontou com a bengala lustrosa para a vitrine, recentemente desfalcada pelos preparativos nupciais do senhor Angus, que, admirado, viu, presa à vidraça, uma longa tira de papel que certamente não estava lá da última vez que olhara. Acompanhando o elétrico Smythe até a rua, descobriu que quase metro e meio de papel postal havia sido cuidadosamente colado no vidro pelo lado de fora; nele, estava escrito, em letras garranchadas: “Se você se casar com Smythe, ele morrerá”.

— Laura — chamou Angus, passando a grande cabeça ruiva pela porta da confeitaria —, você não está louca.

— É a letra daquele tal Welkin — disse Smythe rispidamente. — Não o vejo há anos, mas ele está sempre me perturbando. Cinco vezes, na última quinzena, deixou bilhetes ameaçadores em meu apartamento, e não consigo nem mesmo descobrir quem os entrega, muito menos se é o próprio Welkin. O porteiro jura que não viu ninguém suspeito, e aqui ele grudou uma espécie de friso na vitrine da loja, num lugar público, enquanto as pessoas no interior…

— Exatamente — disse Angus, modesto —, enquanto as pessoas no interior da loja tomavam chá. Bem, senhor, permita-me dizer que aprecio seu bom-senso em abordar de maneira tão direta a questão. Podemos tratar de outros assuntos depois. O sujeito não deve ter ido longe, porque posso jurar que não havia papel aqui quando de minha última visita à vitrine, há dez ou quinze minutos. Por outro lado, está longe demais para o perseguirmos, vez que nem mesmo sabemos em que direção ele foi. Se me permite a sugestão, sr. Smythe, o melhor a fazer é levar o caso a um investigador competente, particular, não público. Conheço alguém extremamente capaz cujo escritório fica a cinco minutos de carro daqui. Seu nome é Flambeau; teve uma juventude um pouco turbulenta, mas agora é um homem estritamente honesto, com um cérebro que vale ouro. Mora no condomínio Lucknow, em Hampstead.

— Interessante — disse o baixinho, arqueando as sobrancelhas escuras. — Eu moro no condomínio Himylaya, dobrando a esquina. Talvez o senhor queira me acompanhar; enquanto vou a meu quarto reunir as cartas de Welkin, o senhor pode buscar seu amigo detetive.

— Muita presteza sua — disse Angus em tom cortês. — Bem, quanto antes agirmos, melhor.

Os pretendentes, numa espécie de curioso e tácito acordo de cavalheiros, se despediram da jovem senhorita de maneira igualmente formal e entraram no lépido carrinho. Smythe acionou o veículo e, no que dobraram a esquina, Angus se divertiu em ver um gigantesco pôster do Serviço Silencioso de Smythe, com a imagem duma enorme boneca de ferro sem cabeça segurando uma caçarola e a legenda: “Uma cozinheira que nunca está de cara amarrada”.

— Eu as utilizo em meu apartamento — disse, rindo, o baixinho de barba preta. — Em parte pela propaganda, em parte por comodidade. Com toda a franqueza, essas grandes bonecas mecânicas são mais ligeiras em trazer carvão, uma taça de vinho ou a tabela de horário dos trens do que qualquer empregado humano que conheço, desde que se saiba que botões apertar. Mas, cá entre nós, não posso negar que têm também suas desvantagens.

— É mesmo? — surpreendeu-se Angus. — Tem alguma coisa que não conseguem fazer?

— Sim — replicou friamente Smythe —; não podem dizer quem deixou aqueles bilhetes ameaçadores no apartamento.

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