A máquina de desintegração, de Arthur Conan Doyle

Professor Challenger estava no pior dos humores. Parado à porta de seu estúdio, mão na maçaneta e pé no capacho, ouvi um monólogo que se desenvolvia da seguinte forma, as palavras ribombando e reverberando pela casa:

— Sim, digo que é a segunda ligação errada. A segunda em uma manhã. Você imagina que um homem de ciência deva ser distraído de trabalho essencial pela constante interferência de algum idiota do outro lado de um cabo? Não aceitarei isso. Passe imediatamente para o gerente. Oh! Você é o gerente. Ora, por que, então, não gerencia? Sim, por gerenciar você entende me distrair de trabalho cuja importância sua mente é incapaz de compreender. Eu quero o superintendente. Não está? Deveria ter imaginado. Vou levá-lo aos tribunais se isso acontecer novamente. O canto de galos já foi causa de litígio. Eu mesmo obtive uma sentença. Se galos cantantes, por que não sinetas estridentes? O caso é claro. Um pedido de desculpas por escrito. Muito bem. Vou levá-lo em consideração. Bom dia.

Foi nesse momento que me aventurei a fazer minha entrada. Foi certamente um momento infeliz. Confrontei-o ao se voltar do telefone – um leão encolerizado. A grande barba preta estava eriçada, o grande peito arfava de indignação e os arrogantes olhos cinzentos me esquadrinharam de cima a baixo enquanto recaía sobre mim o sobejo de sua ira.

— Patifes infernais, inúteis, ganham mais do que deveriam! — explodiu. — Pude ouvi-los rir enquanto fazia minhas justas reclamações. Há uma conspiração para me perturbar. E agora, jovem Malone, você chega para completar uma manhã desastrosa. Está aqui em causa própria ou seu pasquim o incumbiu de obter uma entrevista? Como amigo, você é privilegiado; como jornalista, está ultrapassando todos os limites.

Eu caçava em meu bolso a carta de McArdle quando, de repente, algum novo agravo lhe veio à memória. Suas grandes mãos peludas remexeram os papéis sobre a mesa e finalmente extraíram um recorte de jornal.

— Você teve a gentileza de me referir em uma de suas recentes elucubrações — falou, balançando o papel em minha direção. — Foi no curso de suas observações um tanto pretensiosas a respeito dos restos sáurios descobertos na ardósia de Solenhofen. Você iniciou um parágrafo com as palavras: “Professor G. E. Challenger, um de nossos maiores cientistas vivos”…

— Sim, senhor? — perguntei.

— Por que essas qualificações e limitações hostis? Talvez possa esclarecer quem são esses outros prevalecentes homens de ciência a quem você imputa igualdade, ou possivelmente superioridade, à minha pessoa?

— Eu me expressei mal. Certamente deveria ter dito: “Nosso maior cientista vivo” — admiti. Era minha sincera opinião, afinal. Minhas palavras fizeram do inverno verão.

— Meu caro jovem amigo, não pense que faço exigências, mas cercado, como estou, por colegas belicosos e irracionais, um homem se vê obrigado a tomar seu próprio partido. Autoafirmação é estranha à minha natureza, mas devo proteger meu terreno contra a oposição. Vamos lá! Sente-se aqui! Qual é o motivo de sua visita?

Eu tinha de proceder com cuidado, pois sabia quão fácil seria fazer o leão rugir novamente. Abri a carta de McArdle.

— Posso ler isto para o senhor? É de McArdle, meu editor.

— Lembro-me do sujeito; não é um espécime desfavorável de sua classe.

— Ele tem, de qualquer forma, uma admiração muito grande pelo senhor. Recorreu ao senhor diversas vezes quando precisava das mais altas qualificações em alguma investigação. Este é o caso agora.

— O que ele deseja?

Challenger, sob influência da adulação, emplumou-se como um pássaro desajeitado. Sentou-se com os cotovelos sobre a mesa, as mãos de gorila entrelaçadas, a barba eriçada apontando para frente e os grandes olhos cinzentos, parcialmente encobertos pelas pálpebras baixadas, fitando-me benignamente. Ele era enorme em tudo o que fazia e sua benevolência era ainda mais avassaladora que sua truculência.

— Vou ler o bilhete. Ele diz:

“Por favor, entre em contato com nosso estimado amigo, professor Challenger, e peça sua cooperação nas seguintes circunstâncias. Há um cavalheiro letão chamado Theodore Nemor vivendo em White Friars Mansions, Hampstead, que afirma ter inventado uma máquina de caráter extraordinário capaz de desintegrar qualquer objeto colocado dentro de sua esfera de influência. A matéria se desfaz e retorna à sua condição molecular ou atômica. Revertendo o processo, é possível reconstituí-la. A afirmação parece extravagante, mas há sólida evidência de que tenha alguma base e de que o homem tenha se deparado com uma descoberta notável.

“Não preciso salientar o caráter revolucionário de tal invenção, nem sua extrema importância como potencial arma de guerra. Uma força capaz de desintegrar um navio de guerra ou transformar um batalhão, mesmo que por pouco tempo, em um apanhado de átomos dominaria o mundo. Por razões sociais e políticas, devemos chegar ao fundo dessa questão sem perdermos um instante sequer. O homem busca publicidade, pois está ansioso para vender sua invenção, de forma que não haverá dificuldade para chegar até ele. O cartão anexo abrirá suas portas. O que desejo é que você e o professor Challenger o contatem, inspecionem sua invenção e escrevam para a Gazeta um relatório minucioso sobre o valor da descoberta. Espero notícias suas esta noite.

“R. McARDLE”

— Essas são minhas instruções, Professor — acrescentei, tornando a dobrar a carta. — Espero sinceramente que o senhor venha comigo, pois como poderei eu, com minhas capacidades limitadas, agir sozinho em tal questão?

— Verdade, Malone! Verdade! — murmurou o grande homem. — Embora não seja, de modo algum, destituído de inteligência natural, concordo que você estaria em certa desvantagem perante uma questão como a que me apresenta. Essas inefáveis pessoas ao telefone já arruinaram meu trabalho matutino, de forma que um pouco mais dificilmente fará diferença. Estou empenhado em responder àquele bufão italiano, Mazotti, cujas opiniões sobre o desenvolvimento larval dos cupins tropicais excitaram meu escárnio e desdém, mas posso deixar a completa exposição do impostor para a noite. Até lá, estou a seu serviço.

E foi assim que, naquela manhã de outubro, tomamos o metrô, o professor e eu, com destino ao norte de Londres no que provou ser uma das experiências mais singulares de minha notável existência.

Antes de deixarmos Enmore Gardens, eu havia confirmado, por meio do mui desrespeitado telefone, que nosso homem estava em casa e o alertado de nossa visita. Ele morava em um confortável edifício em Hampstead e nos deixou esperando por cerca de meia hora em sua antessala enquanto travava uma conversa animada com um grupo de visitantes cujas vozes, quando finalmente se despediram no hall, revelaram serem russos. Vislumbrei-os pela porta entreaberta e tive a ligeira impressão de homens prósperos e inteligentes, com golas de pele em seus casacos, cartolas lustrosas e toda aquela aparência de bem-estar burguês que o comunista bem-sucedido tão prontamente assume. A porta do hall se fechou atrás deles e, no instante seguinte, Theodore Nemor adentrou a sala em que estávamos. Ainda agora posso vê-lo, banhado em cheio pela luz do sol, esfregando as mãos longas e finas e nos examinando com seu sorriso largo e seus ardilosos olhos amarelos.

Era um homem baixo e troncudo, com certa sugestão de deformidade, embora fosse difícil dizer onde residia tal sugestão. Poderíamos dizer que era um corcunda sem a corcunda. O rosto grande e macilento parecia um bolinho malcozido, da mesma cor e consistência pegajosa, enquanto as espinhas e manchas que o adornavam pareciam ainda mais agressivas contra o fundo pálido. Seus olhos eram como os de um gato, e felino era o fino, longo e eriçado bigode que encimava a boca frouxa, úmida e cheia de saliva. Tudo era vulgar e repulsivo até chegar às sobrancelhas arenosas. Daí para cima, um arco craniano esplêndido, como poucas vezes vi. O chapéu de Challenger teria cabido perfeitamente naquela cabeça magnífica. Theodore Nemor poderia ser considerado um conspirador vil e repugnante dos olhos para baixo, mas, acima deles, figuraria entre os maiores pensadores e filósofos do mundo.

— Bem, cavalheiros — disse numa voz aveludada com um mínimo vestígio de sotaque estrangeiro —, os senhores vieram, pelo que entendi de nossa curta conversa telefônica, a fim de aprender mais a respeito do Desintegrador Nemor. Estou correto?

— Exatamente.

— Posso perguntar se os senhores representam o governo britânico?

— De forma alguma. Sou um correspondente da Gazeta e este é o professor Challenger.

— Um nome honrado; um nome continental. — Suas presas amareladas cintilaram em obsequiosa amabilidade. — Eu estava prestes a dizer que o governo britânico perdeu sua oportunidade. O que mais terá perdido? Possivelmente, também, seu império. Eu estava disposto a vender ao primeiro governo que me oferecesse o preço justo, e se agora o invento caiu em mãos que podem desagradá-los, vocês só podem culpar a si mesmos.

— Então, o senhor vendeu seu segredo?

— Pelo preço que estabeleci.

— O senhor acha que o comprador manterá o monopólio?

— Sem dúvida que sim.

— Mas outros sabem o segredo além do senhor.

— Não, senhor — e tocou a testa larga. — Este é o cofre no qual o segredo está trancado em segurança; superior a qualquer cofre de aço e protegido por algo melhor que uma chave de Yale. Algumas pessoas podem conhecer um lado da questão; outras podem conhecer outro lado. Ninguém no mundo conhece a totalidade do experimento a não ser eu.

— E aqueles cavalheiros a quem o senhor o vendeu.

— Não, senhor; não sou tolo a ponto de ceder o conhecimento até que o preço seja pago. Depois disso, é a mim que comprarão, e poderão levar este cofre — e novamente tocou a testa —, com todo seu conteúdo, para qualquer lugar que desejarem. Minha parte do acordo estará, então, cumprida: fielmente, cruelmente cumprida. Depois disso, far-se-á história.

Esfregou as mãos e o sorriso fixo em seu rosto se contorceu em algo como uma careta.

— Perdoe-me, senhor — ribombou Challenger, que estivera sentado em silêncio até agora, mas cujo rosto expressivo exibia quase total desaprovação de Theodore Nemor —, nós gostaríamos, antes de discutir o assunto, de nos convencermos de que há realmente algo a ser discutido. Não esquecemos o caso recente de um italiano que propunha explodir minas a distância, mas que se mostrou, sob investigação, um completo farsante. A história pode muito bem se repetir. Entenda, senhor, que tenho uma reputação a zelar como homem de ciência; uma reputação a qual o senhor teve a bondade de descrever como continental, embora eu tenha todas as razões para crer que não seja menos conspícua na América. Precaução é um atributo científico e o senhor deve nos apresentar suas provas antes de considerarmos seriamente suas afirmações.

Os olhos amarelos de Nemor lançaram um olhar particularmente maligno para meu companheiro, mas o sorriso de afetada genialidade ampliou-se em seu rosto.

— O senhor faz jus à sua reputação, professor. Sempre ouvi dizer que o senhor seria o último homem no mundo que se poderia enganar. Estou preparado para fornecer uma real demonstração que não deixará de convencê-lo, mas, antes disso, devo dizer algumas palavras a respeito do princípio geral.

— Entenda que a planta experimental que construí aqui em meu laboratório é um simples modelo, embora funcione admiravelmente dentro de seus limites. Não haveria nenhuma dificuldade, por exemplo, em desintegrá-lo e o reconstituir, mas não é para tal propósito que um grande governo está preparado para pagar um preço que corre em milhões. Meu modelo é um mero brinquedo científico. Mas quando a mesma força é invocada em larga escala, enormes efeitos práticos podem ser alcançados.

— Podemos ver esse modelo?

— O senhor não apenas o verá, professor Challenger, mas terá a demonstração mais conclusiva possível em sua própria pessoa, se tiver coragem de se submeter a ela.

— Se! — rugiu o leão. — Seu “se” é ofensivo no mais alto grau, senhor.

— Ora, ora. Não tive nenhuma intenção de questionar sua coragem. Digo apenas que lhe darei a oportunidade de demonstrá-la. Mas antes, direi algumas palavras sobre as leis fundamentais que governam a matéria.

— Quando certos cristais, sal, por exemplo, ou açúcar, são colocados na água, eles se dissolvem e desaparecem. Ninguém jamais saberia que sequer estiveram lá. Em seguida, por evaporação ou outro processo, reduz-se a quantidade de água e pronto! Lá estão seus cristais, novamente visíveis e tal qual eram antes. Podem imaginar um processo pelo qual um ser orgânico é, da mesma forma, dissolvido no cosmo e, em seguida, por uma sutil reversão das condições, reconstituído?

— A analogia é falsa — exclamou Challenger. — Mesmo que façamos tão monstruosa assunção, de que nossas moléculas podem ser dispersas por algum poder disruptivo, por que deveriam se reagrupar exatamente na mesma ordem que antes?

— A objeção é bastante óbvia e só posso responder que elas se reagrupam dessa forma até o último átomo da estrutura. Há uma armação invisível e cada bloco se aloca em seu legítimo lugar. Você pode sorrir, professor, mas sua incredulidade e seu sorriso podem ser substituídos em breve por uma emoção bem diferente.

Challenger encolheu os ombros. — Estou pronto para colocá-lo à prova.

— Há outro exemplo que gostaria de mencionar, cavalheiros, e que pode ajudá-los a entender a ideia. Vocês ouviram falar, tanto na mágica oriental quanto no ocultismo ocidental, do fenômeno do aporte, quando um objeto é repentinamente transportado a distância e aparece em um novo lugar. Como tal coisa pode ser feita a não ser pela decomposição das moléculas, seu transporte por alguma onda etérea e sua reconstituição, cada qual em seu exato lugar, atraídas por alguma lei irresistível? Esta parece uma boa analogia com aquilo que é feito por minha máquina.

— O senhor não pode explicar um fato inacreditável comparando-o a outra ocorrência inacreditável — disse Challenger. — Não acredito nos seus aportes, sr. Nemor, e não acredito em sua máquina. Meu tempo é precioso e, se teremos algum tipo de demonstração, peço que a inicie sem mais cerimônias.

— Então, sigam-me, por favor — disse o inventor.

Descemos pelas escadas do edifício e atravessamos um pequeno jardim nos fundos. Havia um galpão de tamanho considerável, que ele destrancou para que entrássemos.

Numa grande sala caiada, inúmeros fios de cobre pendiam do teto em grinaldas e um imenso magneto se equilibrava sobre um pedestal. Algo semelhante a um prisma de vidro ficava à sua frente, noventa centímetros de comprimento por cerca de trinta de diâmetro. À direita havia uma cadeira em uma plataforma de zinco sobre a qual estava suspensa uma chapa de cobre polido. Tanto a chapa quanto a cadeira estavam ligadas a pesados cabos, e a seu lado havia uma espécie de chave reguladora com posições numeradas e uma alavanca emborrachada que repousava na posição zero.

— O Desintegrador Nemor — disse o estranho homem, gesticulando para a máquina. — Este é o modelo destinado a se tornar famoso por alterar o equilíbrio de poder entre as nações. Quem o controlar governará o mundo. Agora, professor Challenger, o senhor, se posso dizer, tratou-me com alguma descortesia e falta de consideração nesta matéria. Ousará sentar naquela cadeira e permitir que eu demonstre, em sua própria pessoa, as capacidades dessa nova força?

Challenger tinha a coragem de um leão e qualquer coisa da natureza de um desafio provocava nele um frenesi instantâneo. Ele avançou para a máquina, mas agarrei seu braço e o detive.

— O senhor não deve ir — falei. — Sua vida é valiosa demais. É monstruoso. Que possível garantia de segurança tem o senhor? A coisa mais próxima àquele aparato que já vi foi a cadeira elétrica em Sing Sing.

— Minha garantia de segurança — disse Challenger — é que você é testemunha, e que esta pessoa seria certamente arrestada por homicídio caso algo me acontecesse.

— Este seria um frágil consolo para o mundo da ciência, visto que o senhor deixaria inacabado trabalho que ninguém mais poderia executar. Deixe-me, pelo menos, ir primeiro, e então, quando a experiência se provar inofensiva, o senhor poderá seguir.

Risco pessoal nunca teria persuadido Challenger, mas a ideia de que seu trabalho científico pudesse ficar inacabado o atingiu em cheio. Ele hesitou, e antes que pudesse mudar de ideia, tomei a frente e saltei na cadeira. Vi o inventor pôr a mão na alavanca. Ouvi um clique. Em seguida, um momento de confusão e uma névoa diante dos olhos.

Quando se dissipou, o inventor, com seu sorriso odioso, estava de pé a minha frente, e Challenger, com as faces vermelhas desprovidas de sangue e cor, observava por sobre seu ombro.

— Ora, vamos logo com isso! — falei.

— Já acabou. Você respondeu admiravelmente — retorquiu Nemor. — Saia, pois o professor Challenger estará agora, sem dúvida, preparado para tomar seu lugar.

Eu nunca havia visto meu velho amigo tão absolutamente transtornado. Por um momento, seus nervos de aço pareciam tê-lo abandonado por completo. Segurou meu braço com a mão trêmula.

— Meus Deus, Malone, é verdade — falou. — Você desapareceu. Não há dúvida a esse respeito. Houve uma névoa momentânea e então, ausência.

— Quanto tempo fiquei ausente?

— Dois ou três minutos. Confesso que fiquei aterrorizado. Não imaginava que você pudesse retornar. Então, ele movimentou essa alavanca, se é que é uma alavanca, para uma nova posição e lá estava você na cadeira, aparentando alguma confusão, mas, de outra forma, o mesmo de sempre. Agradeci a Deus quando o vi!

Enxugou a testa molhada com seu grande lenço vermelho.

— Agora, senhor — disse o inventor. — Ou talvez sua coragem o tenha abandonado?

Challenger retesou-se visivelmente. Então, afastando minha mão, erguida em protesto, sentou-se na cadeira. A alavanca se moveu para o número três. Ele desapareceu.

Eu teria ficado aterrorizado não fosse a perfeita calma do operador.

— Processo interessante, não é? — comentou. — Considerando-se a extraordinária individualidade do professor, é estranho pensar que, no momento, ele é uma nuvem de moléculas suspensa em alguma porção deste edifício. Ele está agora, obviamente, completamente à minha mercê. Se eu decidir deixá-lo em suspensão, não há nada na Terra que me possa impedir.

— Eu certamente encontraria meios de impedi-lo.

O sorriso virou novamente uma careta.

— Não imagine que tal pensamento tenha sequer passado por minha mente. Bom Deus! Pense na dissolução permanente do grande professor Challenger, desaparecido no espaço cósmico sem deixar traço! Terrível! Terrível! Ao mesmo tempo, ele não foi tão cortês quanto deveria. Você não acha que uma pequena lição…?

— Não, não acho.

— Bem, chamaremos de uma curiosa demonstração. Algo que deve dar um parágrafo interessante em seu jornal. Por exemplo, eu descobri que os pelos do corpo, estando em uma vibração diferente dos tecidos orgânicos vivos, podem ser incluídos ou excluídos à vontade. Gostaria de ver o urso sem a pelagem. Observe!

A alavanca se moveu. Um instante depois, Challenger estava sentado na cadeira uma vez mais. Mas que Challenger! Que leão pelado! Por mais furioso que estivesse com a peça que lhe havia sido pregada, mal pude evitar uma risada.

Sua enorme cabeça estava tão careca quanto a de um bebê, e seu queixo, tão liso quanto o de uma menina. Privado de sua gloriosa juba, a parte inferior do rosto revelava uma queixada pesada e em formato de presunto, enquanto sua aparência geral era a de um velho gladiador, combalido e inchado, com a mandíbula de um buldogue sobre um queixo enorme.

Talvez tenha sido alguma expressão em nossos rostos – não tenho dúvida de que o sorriso maligno de meu acompanhante se ampliou com tal visão –, mas, o que quer que tenha sido, a mão de Challenger se dirigiu à cabeça e ele tomou ciência de sua condição. No instante seguinte, saltou da cadeira, agarrou o inventor pelo pescoço e o jogou no chão. Conhecendo a imensa força de Challenger, convenci-me de que mataria o homem.

— Pelo amor de Deus, tenha cuidado. Se o matar, não teremos como consertar as coisas! — gritei.

Esse argumento prevaleceu. Mesmo em seus momentos mais furiosos, Challenger estava sempre aberto à razão. Levantou-se do chão, arrastando consigo o trêmulo inventor.

— Dou-lhe cinco minutos — ofegou em sua fúria. — Se, em cinco minutos, eu não estiver como era, vou esganá-lo até arrancar a vida de seu corpo miserável.

Challenger, em um acesso de fúria, não era boa pessoa com quem discutir. O mais bravo dos homens se encolheria diante dele e não havia sinais de que o sr. Nemor fosse um homem particularmente corajoso. Ao contrário, as manchas e espinhas em seu rosto se tornaram ainda mais proeminentes quando o rosto por trás delas passou da cor de massa de vidraceiro, que lhe era normal, para a de barriga de peixe. Seus membros tremiam e ele mal conseguia falar.

— Francamente, professor! — balbuciou, mão no pescoço —, essa violência é absolutamente desnecessária. Certamente, uma brincadeira inofensiva é aceitável entre amigos. Era meu desejo demonstrar os poderes da máquina. Imaginei que você quereria uma demonstração completa. Sem ofensa, eu o asseguro. De forma nenhuma, professor!

Como resposta, Challenger voltou a sentar na cadeira.

— Fique de olho nele, Malone. Não permita quaisquer liberdades.

— Estarei de olho, senhor.

— Agora, ponha tudo como deve ser ou sofra as consequências.

O aterrorizado inventor se aproximou de sua máquina. O poder reconstituinte foi acionado a toda carga e, um instante depois, lá estava novamente o velho leão com sua juba enleada. Coçou a barba carinhosamente e passou as mãos na cabeça para se assegurar de que a restauração era completa. Em seguida, desceu solenemente de seu assento.

— O senhor tomou certas liberdades que poderiam ter causado sérias consequências. Entretanto, estou disposto a aceitar sua explicação de que foi apenas para fins de demonstração. Agora, permita-me fazer algumas perguntas diretas sobre esse notável poder que o senhor afirma ter descoberto.

— Estou pronto a responder qualquer coisa, exceto qual é a fonte da energia. Isso é segredo meu.

— E o senhor nos informa sinceramente que ninguém no mundo a conhece além do senhor?

— Ninguém faz a menor ideia.

— Nenhum assistente?

— Não, senhor. Eu trabalho sozinho.

— Minha nossa! Isso é muito interessante. O senhor me satisfez quanto à realidade da energia, mas ainda não percebo suas possibilidades práticas.

— Eu já expliquei, senhor, que isto é um modelo. Mas seria muito simples construir uma planta em larga escala. O senhor entende que este modelo age na vertical. Certas correntes acima e outras tantas abaixo criam vibrações que ou desintegram ou reconstituem. Mas o processo pode ser lateral. Assim conduzido, teria o mesmo efeito e cobriria um espaço proporcional à intensidade da corrente.

— Dê um exemplo.

— Suponhamos que um polo estivesse em um pequeno veículo e um segundo polo, em outro; um couraçado entre eles seria simplesmente molecularizado. Da mesma forma, uma coluna de tropas.

— E o senhor vendeu esse segredo como monopólio para uma única potência europeia?

— Sim, senhor, eu vendi. Quando o preço for pago, terão um poder que nenhuma nação jamais teve. Mesmo agora, o senhor não enxerga as totais possibilidades desse poder em mãos capazes, mãos que não temam empunhar a arma que lhes é oferecida. Elas são imensuráveis. — Um sorriso de triunfo acendeu seu rosto maligno. — Imagine um quarteirão de Londres onde tais máquinas sejam instaladas. Imagine o efeito de tal corrente ante a escala que pode facilmente ser adotada. Ora — escapou-lhe uma gargalhada —, posso imaginar todo o vale do Tâmisa sendo varrido do mapa sem que um único homem, mulher ou criança reste de todos aqueles fervilhantes milhões!

As palavras me encheram de horror – e, mais ainda, o ar de exultação com o qual foram enunciadas. Pareceram, no entanto, produzir um efeito bem diferente em meu acompanhante. Para minha surpresa, ele irrompeu em um sorriso genial e estendeu a mão para o inventor.

— Bem, sr. Nemor, devemos parabenizá-lo — falou. — Sem dúvida, o senhor se deparou com uma notável propriedade da natureza, a qual conseguiu adaptar para uso do homem. Que esse uso seja destrutivo é certamente muito deplorável, mas a ciência não conhece distinções desse tipo, apenas segue o conhecimento aonde quer que ele leve. À parte o princípio envolvido, o senhor não tem, suponho, nenhuma objeção a que eu examine a estrutura da máquina?

— De forma alguma. A máquina é apenas o corpo. É sua alma, o princípio vital, que o senhor não deve ter qualquer esperança de apreender.

— Perfeitamente. Mas o simples mecanismo parece ser um modelo de inventividade.

Durante algum tempo, rodeou a máquina e tocou suas diversas partes. Em seguida, deixou-se cair pesadamente sobre a cadeira isolada.

— Gostaria de outra excursão pelo cosmo? — perguntou o inventor.

— Mais tarde, talvez; mais tarde! Nesse meio tempo, há, como o senhor sem dúvida já sabe, uma pequena fuga de eletricidade. Sinto distintamente uma fraca corrente passando por mim.

— Impossível. Está completamente isolada.

— Pois eu o asseguro de que posso sentir — disse, abandonando o assento.

O inventor se apressou em tomar seu lugar.

— Não sinto nada.

— Não sente um formigamento em sua espinha?

— Não, senhor, não sinto nada do tipo.

Um clique repentino e o homem desapareceu. Olhei espantado para Challenger.

— Bom Deus! O senhor tocou na máquina, professor?

Sorriu amigavelmente e com leve ar de surpresa.

— Minha nossa! Devo ter tocado inadvertidamente na alavanca — falou. — Estamos sempre sujeitos a incidentes desagradáveis com um modelo mal-acabado como este. Esta alavanca certamente deveria estar protegida.

— Está no número três. Esta é a posição que causa desintegração.

— Assim observei quando você desapareceu.

— Mas eu estava tão nervoso quando ele o trouxe de volta que não atentei para a posição correta de reintegração. O senhor notou?

— Posso ter notado, jovem Malone, mas não ocupo minha mente com detalhes. Há muitas posições e não sabemos seu propósito. Podemos complicar as coisas experimentando com o desconhecido. Talvez seja melhor deixar tudo como está.

— E o senhor deixaria…

— Exatamente. É melhor assim. A interessante personalidade do sr. Theodore Nemor se dispersou pelo cosmo, sua máquina é inútil e um certo governo estrangeiro foi privado de conhecimento por meio do qual muitos danos poderiam ter sido causados. Nada mal para uma manhã de trabalho, jovem Malone. Seu pasquim terá, sem dúvida, uma interessante coluna a respeito do inexplicável desaparecimento de um inventor letão pouco depois da visita de seu próprio correspondente especial. Eu apreciei a experiência. São esses momentos leves que iluminam a pesada rotina de estudos. Mas a vida tem seus deveres, assim como seus prazeres, e agora retorno para o italiano Mazotti e suas ridículas ideias a respeito do desenvolvimento larval dos cupins tropicais.

Olhando para trás, tive a impressão de que uma tênue névoa oleaginosa ainda pairava ao redor da cadeira.

— Mas certamente… — insisti.

— O primeiro dever do cidadão cumpridor da lei é se opor ao assassinato — disse o professor Challenger. — Foi o que eu fiz. Chega, Malone, chega! O tema não está aberto a discussão. Ele já afastou por tempo demais meus pensamentos de assuntos de maior importância.

Tradução: Rodrigo R. Carmo

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