A nova mãe, de Lucy Clifford

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As meninas eram sempre chamadas Olhos Azuis e Glu-glu, e ganharam esses nomes da seguinte maneira. A mais velha parecia o pai, que estava muito longe no mar, e quando a mãe olhava para ela, sempre dizia: — Filha, você puxou os olhos de seu pai —, pois ele tinha os mais azuis dos olhos azuis, e pouco a pouco sua menininha veio a ser chamada desse jeito. A mais nova, certa vez, quando ainda era pouco mais que um bebê, chorou amargamente porque um peru que vivia perto da cabana e às vezes deambulava pela floresta desapareceu repentinamente no meio do inverno; e, para seu consolo, recebeu esse nome.

A mãe, Olhos Azuis, Glu-glu e o bebê viviam numa cabana isolada na orla da floresta. O bosque era tão próximo que o jardim dos fundos parecia fazer parte dele, e os altos abetos ficavam tão perto que seus grandes braços escuros se estendiam sobre o pequeno telhado de palha e, quando o luar incidia sobre eles, suas sombras retorcidas recobriam as paredes caiadas.

Era uma boa distância até a vila, quase dois quilômetros e meio. A mãe trabalhava duro e nem sempre tinha tempo para ir pessoalmente conferir se havia carta do pai no correio, de modo que, frequentemente, à tarde, ela mandava as crianças. Elas se orgulhavam de ir sozinhas e muitas vezes corriam metade do caminho até a agência do correio. Quando voltavam, cansadas da longa caminhada, a mãe estava sempre esperando e olhando por elas, o chá estava pronto e o bebê, rindo e brincando; e se por acaso houvesse uma carta vinda do mar, a alegria era completa. A cabana era muito aconchegante: as paredes eram brancas como a neve tanto dentro quanto fora e penduradas nelas ficavam a forma de bolo e a assadeira, a tampa de uma grande caçarola que se desgastara há mais tempo do que as crianças podiam lembrar e a espátula, todas polidas e reluzentes como prata. Num dos lados da lareira, acima do fole, ficava o almanaque; no outro, o relógio, que sempre batia a hora errada e estava sempre pedindo corda, mas que era um bom relógio, tinha uma figurinha na face e às vezes funcionava quase uma semana sem parar. Num dos cantos ficava a cadeirinha do bebê e noutro havia um guarda-louça pendurado bem alto na parede no qual a mãe mantinha todo tipo de surpresinha. As crianças sempre se indagavam como as coisas que saíam do guarda-louça haviam ido parar lá, pois raramente viam-na colocá-las nele.

— Filhas queridas — disse a mãe certa tarde no final do outono —, está muito frio para irem à vila, então devem andar depressa; e quem sabe não trazem para casa uma carta dizendo que o papai já está a caminho da Inglaterra?

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Então Olhos Azuis e Glu-glu se apressaram e logo estavam prontas para sair. — Não demorem — disse a mãe, como sempre fazia antes de partirem. — Peguem o caminho mais curto e não olhem nem falem com desconhecidos.

— Não, mamãe — respondiam; em seguida ela as beijava e dizia que eram boas meninas e elas partiam sorridentes.

A vila estava mais alegre que o normal, pois uma feira havia acontecido no dia anterior e as pessoas que se divertiram juntas permaneciam nas ruas, como que relutantes de admitir o término do feriado.

— Queria que tivéssemos vindo ontem — disse Olhos Azuis a Glu-glu —; aí teríamos visto alguma coisa.

— Olhe ali — disse Glu-glu, e apontou para uma barraca de pão de gengibre; mas as crianças não tinham dinheiro.

No fim da rua, perto do Blue Lion, onde paravam os coches, um velho estava sentado no chão com as costas apoiadas na parede de uma casa e, junto dele, ostentando belas coleiras, havia dois cachorros. Eram evidentemente cachorros dançarinos, pensaram as crianças, e desejaram vê-los se apresentar, mas pareciam tão cansados quanto seu dono e permaneciam muito quietos a seu lado, parecendo não lhes restar um único abano nas respectivas caudas.

— Oh, queria mesmo que tivéssemos vindo ontem — repetiu Olhos Azuis enquanto se dirigiam à mercearia, que era também a agência do correio.

A agente postal estava muito ocupada pesando meias-libras de café e quando pôde atender as crianças, disse apenas: — Não há nada para vocês hoje — e voltou ao que estava fazendo. Então Olhos Azuis e Glu-glu deram meia-volta e foram para casa. Desceram lentamente a rua principal, passando novamente pelo homem com os cães. Um dos cachorros se levantara e estava sentado meio torto, com a cabeça muito inclinada para um lado, parecendo bastante melancólico e um tantinho ridículo; mas as crianças prosseguiram rumo à ponte e aos campos que conduziam à floresta.

Haviam deixado a vila e caminhado um pouco quando, logo antes de alcançar a ponte, perceberam, encostado numa pilha de pedras à beira da estrada, um vulto estranho. De início pensaram tratar-se de alguém dormindo, depois acharam que era uma pobre mulher doente e faminta, em seguida viram que era uma estranha menina de aparência desvairada e muito infeliz e tiveram certeza de que havia algo errado. Então foram e olharam para ela, e pensaram em perguntar se podiam ajudar de alguma maneira, pois eram meninas gentis e que se preocupavam com os problemas dos outros.

A garota tinha cerca de quinze anos e aparentava ser alta. Vestia roupas muito esfarrapadas. Cobria-lhe os ombros um velho xale marrom rasgado na ponta que lhe pendia do meio das costas. Não usava chapéu, e um velho lenço amarelo que amarrara na cabeça havia caído para trás e estava todo embolado no pescoço. Seu cabelo era preto como carvão e estava despenteado e solto, de qualquer maneira. Não era muito longo, mas era muito lustroso, e parecia combinar com os olhos negros e reluzentes e a pele cheia de sardas. Usava grosseiras meias cinza e botas grossas e gastas que evidentemente esquecera de amarrar. Tinha alguma coisa escondida sob o xale, mas as crianças não sabiam o quê. Pensaram de início ser um bebê, mas quando ela, ao vê-las chegando, colocou-a cuidadosamente embaixo de si e sentou em cima, acharam estar enganadas. Permaneceu sentada, vendo as crianças se aproximarem, e não se moveu nem piscou até estarem a um metro de distância; daí secou o rosto, como se antes chorasse amargamente, e ergueu os olhos.

As crianças ficaram imóveis um instante, encarando-a e pensando no que fazer.

— Está chorando? — perguntaram, tímidas.

Para sua surpresa, ela, num tom de voz muito animado, respondeu: — Minha nossa, não! Muito pelo contrário. E vocês?

Acharam um tanto rude essa resposta, pois seria óbvio para qualquer um que não estavam chorando. Sentiram-se meio decididas a ir embora; mas a garota as olhava tão intensamente com seus grandes olhos negros que não quiseram partir sem dizer alguma coisa mais.

— Está perdida, talvez? — disseram gentilmente.

Mas de pronto a garota respondeu: — Certamente não. Ora, vocês acabam de me encontrar. Além disso — acrescentou —, eu moro na vila.

Nisso as crianças se surpreenderam, pois nunca antes a haviam visto e pensavam conhecer todo mundo na vila.

— Vamos sempre à vila — disseram, pensando que isso poderia interessá-la.

— Pois é — ela respondeu. Foi só; e novamente ficaram pensando no que fazer.

Então Glu-glu, dona de uma mente inquisitiva, fez uma boa e direta pergunta: — No que você está sentada?

— Em um peribaque — respondeu a garota, ainda num tom de voz muito animado, o que deixou cismadas as crianças, pois ela parecia um tanto fria e desconfortável.

— O que é um peribaque? — perguntaram.

— Fico surpresa que não saibam — respondeu a garota. — A maioria das pessoas de bom nível tem um. — Em seguida o puxou e mostrou a elas. Era um instrumento curioso, de formato bem parecido ao de um violão; tinha três cordas, mas apenas duas cavilhas com que afiná-las. A terceira corda nunca era afinada, o que aumentava o efeito singular produzido pela música da garota da vila. Ainda assim, curiosamente, não se tocava o peribaque tangendo-lhe as cordas, mas girando uma pequena manivela habilmente disfarçada num dos lados.

Mas o estranho no peribaque não era a música que produzia, nem as cordas, tampouco a manivela, mas uma pequena caixa de formato quadrado presa a um dos lados. A caixa tinha uma tampinha chata do tipo que é acionada por mola. Foi tudo que as crianças conseguiram distinguir a princípio. Estavam muito ansiosas para ver dentro da caixa ou saber o que continha, mas acharam que pareceria curiosidade se o dissessem.

— É realmente uma beleza, é um peribaque — disse a garota, olhando para o instrumento e falando de forma quase carinhosa.

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— Onde você o conseguiu? — perguntaram as crianças.

— Eu comprei — respondeu a garota.

— E não é caro? — perguntaram.

— Sim — respondeu lentamente a garota, balançando a cabeça —, é um bocado caro. Eu sou muito rica — acrescentou.

E essa afirmação as crianças acharam particularmente notável, pois não supunham que gente rica vestisse roupas velhas ou andasse por aí sem chapéu. Ela podia ao menos ter feito o cabelo, pensaram; mas acharam melhor não falar.

— Você não parece rica — disseram lentamente e no tom de voz mais educado possível.

— Talvez não — respondeu alegremente a garota.

Nisso as crianças reuniram coragem e se atreveram a comentar: — Você parece um tanto desalinhada — preferiram não dizer maltrapilha.

— É mesmo? — disse a garota, como quem ouve uma afirmação ao mesmo tempo agradável e surpreendente. — Um pouco de desalinho é muito respeitável — acrescentou, satisfeita. — Preciso contar isso a eles — prosseguiu. E as crianças se indagaram o que quereria dizer. Ela abriu a caixa ao lado do peribaque e disse, como se falasse com alguém que pudesse ouvi-la: — Elas dizem que eu pareço um tanto desalinhada; que sorte, não é?

— Ora, você não está falando com ninguém! — disseram, mais surpresas que nunca.

— Minha nossa, sim! Estou falando com eles dois.

— Eles dois? — disseram, desconfiadas.

— Sim. Tenho aqui um homenzinho vestido de camponês que usa um chapéu de aba larga enfeitado com uma grande pluma e uma mulher igualmente pequenina vestindo uma anágua vermelha e com um lenço branco cobrindo-lhe o busto. Eu os coloco na tampa da caixa e, quando toco, eles dançam lindamente. O homenzinho acena com o chapéu e a mulherzinha ergue um pouquinho a anágua de um lado enquanto manda um beijo com a outra mão.

— Oh! Mostre-nos; deixe-nos ver! — clamaram as crianças ao mesmo tempo.

Mas a garota da vila se limitou a fitá-las, duvidosa.

— Deixá-las ver! — falou lentamente. — Bem, não sei se posso. Digam-me, vocês são boazinhas?

— Sim, sim — responderam, ansiosas —, somos muito boazinhas.

— Então, não será possível — respondeu ela, fechando resolutamente a tampa da caixa.

Olharam-na, perplexas.

— Mas nós somos boas — clamaram, pensando que ela tivesse entendido errado. — Somos muito boazinhas. Mamãe sempre diz que somos.

— Foi o que disseram — falou a garota num tom decidido.

Mas as crianças ainda não entendiam.

— Então não vai nos mostrar o homenzinho e a mulherzinha? — perguntaram.

— Minha nossa, não! — respondeu a garota. — Apenas crianças malcomportadas podem vê-los.

— Apenas crianças malcomportadas! — exclamaram.

— Sim, crianças malcomportadas — respondeu ela —; e quanto pior a criança, melhor dançam o homem e a mulher.

Colocou o peribaque cuidadosamente sob a capa esfarrapada e se preparou para ir embora.

— Francamente, não teria acreditado que fossem boazinhas — disse ela em tom de reprimenda, como se tivessem confessado um crime grave. — Bem, tenham um bom dia.

— Oh, mostre-nos o homenzinho e a mulherzinha — gemeram.

— Claro que não. Bom dia — falou novamente.

— Oh, mas seremos malcomportadas — disseram, desesperadas.

— Receio que não consigam — respondeu, sacudindo a cabeça. — É preciso um bocado de talento, especialmente para ser malcomportado. Bem, bom dia — disse pela terceira vez. — Talvez nos vejamos amanhã na vila.

E partiu rapidamente, deixando as crianças com os olhos cheios de lágrimas e o coração dolorido de decepção.

— Se ao menos tivéssemos sido malcomportadas — disseram —, teríamos visto eles dançarem; teríamos visto a mulherzinha erguendo a anágua vermelha e o homenzinho acenando com o chapéu. Oh, como faremos para que ela nos deixe vê-los?

— E se — disse Glu-glu — tentássemos ser malcomportadas hoje? Talvez ela nos deixasse vê-los amanhã.

— Mas, oh! — disse Olhos Azuis. — Eu não sei ser malcomportada; ninguém nunca me ensinou.

Glu-glu ficou alguns minutos pensando em silêncio.

— Acho que posso ser malcomportada se tentar — falou. — Tentarei logo mais.

Olhos Azuis explodiu em lágrimas.

— Oh, não seja malcomportada sem mim! — exclamou. — Seria tão rude de sua parte. Sabe que eu quero ver o homenzinho e a mulherzinha tanto quanto você. Você é muito, muito rude — e soluçou amargamente.

E dessa forma, brigando e chorando, chegaram em casa.

Agora, quando a mãe as viu, ficou muito surpresa e, temendo terem se machucado, correu a seu encontro.

— Oh, minhas crianças, minhas queridas, queridas crianças — falou —; o que aconteceu?

Mas não ousavam contar à mãe a respeito da garota da vila e do pequenino casal, então responderam: — Nada aconteceu; nada, nadinha aconteceu — e choraram ainda mais.

— Mas por que estão chorando? — perguntou a mãe, surpresa.

— Nada nos proíbe de chorar se quisermos — soluçaram. — Gostamos muito de chorar.

— Pobres crianças! — disse a mãe a si mesma. — Estão cansadas, e talvez estejam com fome; vão se sentir melhor depois do chá. — Voltou para a cabana e atiçou o fogo até seu reflexo dançar nos utensílios nas paredes; colocou a chaleira para ferver, pôs a mesa do chá, abriu a janela para deixar entrar o doce ar fresco e fez tudo parecer alegre. Em seguida, foi ao pequeno guarda-louça pendurado bem alto na parede, pegou um pouco de pão e colocou na mesa; depois, carinhosamente, falou: — Queridas meninas, venham tomar seu chá; está tudo prontinho para vocês. E vejam, o bebê está despertando de seu sono; vamos colocá-la na cadeirinha e ela vai fazer festinha enquanto comemos.

Mas as crianças não responderam à mãe; permaneceram junto à janela e não disseram nada.

— Venham, crianças — disse a mãe novamente. — Venha, Olhos Azuis; venha, minha Glu-glu; tem pão doce para acompanhar o chá.

Então Olhos Azuis e Glu-glu se voltaram e quando viram o pão fofo, crocante e moreninho, e as xícaras lado a lado e a jarra de leite, tudo esperando por elas, foram sentar à mesa e se sentiram um pouco mais felizes; e a mãe acabou não sentando o bebê na cadeirinha, colocou-a nos joelhos e brincou com ela, cantou trechinhos de canção, riu e pareceu contente, e pensou no pai, distante no mar, imaginando o que diria a todas elas quando voltasse para casa. Mas quando ergueu de repente a vista, percebeu que os olhos de Glu-glu estavam cheios de lágrimas.

— Glu-glu! — exclamou. — Minha querida Glu-gluzinha! Qual o problema? Venha com a mamãe, meu amor; venha com sua mãe — e, colocando o bebê no tapete, estendeu os braços abertos; Glu-glu levantou e correu até ela.

— Oh, mamãe — soluçou ela —, oh, mamãezinha! Eu quero tanto ser malcomportada.

— Filha querida! — exclamou a mãe.

— Sim, mamãe — soluçou a criança mais e mais amargamente. — Eu quero tanto ser muito, muito malcomportada.

Então Olhos Azuis também levantou da cadeira e, esfregando o rosto no ombro da mãe, fungou, triste:

— Eu também, mamãe. Oh, eu daria tudo para ser muito, muito malcomportada.

— Mas, filhas queridas — disse a mãe, perplexa —, por que vocês querem tanto ser malcomportadas?

— Porque sim; oh, o que vamos fazer? — clamaram ao mesmo tempo.

— Eu ficaria muito zangada se vocês fossem malcomportadas. Mas não farão isso, porque vocês me amam — respondeu a mãe.

— Por que não seríamos malcomportadas por amar você? — perguntaram.

— Porque me deixaria triste; e se vocês me amam, não vão querer me deixar triste.

— Por que não? — perguntaram.

A mãe pensou um pouco antes de responder; e quando respondeu, elas quase não entenderam, talvez porque ela falasse mais para si do que para elas.

— Porque quando se ama a sério — disse ela gentilmente —, esse amor é mais forte que todos os sentimentos ruins na pessoa e capaz de derrotá-los. E é isso que comprova se o amor é verdadeiro ou falso: crueldade e malícia não têm poder sobre ele.

— Não entendemos o que disse — clamaram —; nós a amamos; mas queremos ser malcomportadas.

— Então eu saberia que vocês não me amam — disse a mãe.

— E o que você faria? — perguntou Olhos Azuis.

— Não sei dizer. Eu tentaria corrigi-las.

— E se não conseguisse? Se fôssemos muito, muito, muito malcomportadas e não nos corrigíssemos, o que você faria?

— Então — disse a mãe, triste; e enquanto falava, seus olhos se encheram de lágrimas e ela quase engasgou — , então eu teria que deixar vocês, e teria de mandar para casa uma nova mãe, com olhos de vidro e rabo de madeira.

— Você não faria isso — clamaram.

— Sim, eu faria — respondeu ela em voz baixa —; mas me deixaria muito triste, e eu só o faria se vocês se comportassem muito, muito mal e eu fosse obrigada.

— Não seremos malcomportadas — clamaram —; seremos boazinhas. Detestaríamos uma nova mãe; não queremos ela aqui — e abraçaram a mãe e a beijaram carinhosamente.

Mas quando foram para a cama, soluçaram amargamente, pois lembraram do homenzinho e da mulherzinha e almejaram mais do que nunca vê-los; mas como poderiam deixar sua mãe ir embora e uma nova mãe tomar seu lugar?

2

— Bom dia — disse a garota da vila ao ver se aproximarem Olhos Azuis e Glu-glu. Estava outra vez sentada junto ao monte de pedras com o peribaque oculto sob o xale. Parecia mesmo não ter se movido desde o dia anterior. — Bom dia — e o tom de voz era o mesmo que usara um dia antes —; o tempo está realmente encantador.

— O homenzinho e a mulherzinha estão aí? — perguntaram as crianças, ignorando o comentário.

— Sim; muita gentileza sua perguntar — respondeu a garota —; estão ambos aqui e ambos muito bem. O homenzinho está aprendendo a chocalhar o dinheiro em seu bolso e a mulherzinha ouviu um segredo – que ela conta enquanto dança.

— Oh, deixe-nos ver — suplicaram.

— Impossível, eu garanto — respondeu prontamente a garota. — Vejam, vocês são boazinhas.

— Oh! — disse Olhos Azuis, triste. — Mas mamãe diz que, se formos malcomportadas, ela irá embora e será substituída por uma nova mãe, com olhos de vidro e rabo de madeira.

— Pois é — disse a garota, falando ainda no mesmo tom despreocupado —, é o que todas dizem.

— Como assim? — perguntou Glu-glu.

— Todas fazem esse tipo de ameaça. É claro que não existem mães com olhos de vidro e rabo de madeira; seriam caras demais para se fazer.

E a sensatez dessa observação as crianças, especialmente Glu-glu, perceberam de imediato, mas disseram apenas, meio chorando: — Pensamos que você poderia nos deixar ver o homenzinho e a mulherzinha dançarem.

— Vocês pensam cada coisa — retorquiu a garota da vila.

— Mas se formos malcomportadas, você deixa? — perguntaram, desesperadas.

— Receio que não consigam ser malcomportadas; digo, realmente malcomportadas; mesmo que tentem — disse ela com desdém.

— Oh, mas nós tentaremos; tentaremos sim — clamaram —; nos mostre.

— De antemão, nem pensar — respondeu a garota, levantando e se preparando para ir embora.

— Mas se formos muito malcomportadas à noite, você nos mostra amanhã?

— O amanhã sempre tem as melhores respostas para as perguntas de hoje — disse a garota, e se voltou como se fosse embora. — Bom dia — disse, descontraída —; preciso mesmo ir e praticar um pouco; bom dia — repetiu, e subitamente começou a cantar:

O tatuzinho é tão querido,
A abelha também é,
Mas sempre foi meu preferido
O gentil chimpanzé,
O gentil chimpanzéééé,
O gentil chim

— Perdão — falou, parando e olhando por cima do ombro —, que grosseria a minha cantar sem pedir licença. Não acontecerá de novo.

— Oh, vá em frente — disseram as crianças.

— Estou indo — disse ela, e saiu andando.

— Não, continue cantando, queremos dizer — explicaram —, e nos deixe ouvi-la tocar — suplicaram, lembrando que não haviam escutado, até então, nem um acorde do peribaque.

— Impossível — bradou enquanto caminhava. — Como já expliquei, vocês são boazinhas. O prazer da bondade está na própria bondade; os prazeres da diabrura são muitos e variados. Bom dia — berrou, pois estava quase longe demais para ser ouvida.

Durante alguns minutos, as crianças ficaram paradas, vendo-a se distanciar; depois, caíram no choro.

— Ela podia ter nos deixado ver — soluçaram.

Glu-glu foi a primeira a secar as lágrimas.

— Vamos para casa ser malcomportadas — falou —; daí, talvez, ela nos deixe ver amanhã.

— Mas o que vamos fazer? — perguntou Olhos Azuis, erguendo as vistas. Então planejaram, durante todo o caminho, como poderiam começar a ser malcomportadas. E naquela tarde, a mãe ficou muito contrariada, pois, em vez de sentarem sorridentes à mesa como de costume e ajudá-la depois a limpar e fazer tudo que era dito, quebraram as canecas e jogaram no chão o pão com manteiga, e quando a mãe lhes dizia para fazer alguma coisa, cuidavam de fazer outra, e quanto a ajudá-la a limpar, deixaram-na fazer tudo sozinha, e bateram os pés de raiva quando ela mandou que subissem até se corrigirem.

— Não seremos boazinhas — gritaram. — Detestamos ser boazinhas e pretendemos sempre ser malcomportadas. Gostamos muito de ser malcomportadas.

— Lembram o que eu disse que faria se vocês se comportassem muito, muito mal? — perguntou a mãe, triste.

— Sim, nós sabemos, mas não é verdade — gritaram. — Não existe nenhuma mãe com rabo de madeira e olhos de vidro, e se existisse nós a espetaríamos com alfinetes e a mandaríamos embora, mas não existe.

Então a mãe ficou realmente muito zangada e as mandou para o quarto, mas em vez de chorar e se arrepender, elas se regozijaram, e quando foram para a cama, cantaram canções alegres a plenos pulmões.

Bem cedo no dia seguinte, sem pedir permissão à mãe, as crianças levantaram e correram pelos campos o mais rápido que puderam em direção à ponte a fim de procurar a garota da vila. Estava sentada, como de costume, junto ao monte de pedras com o peribaque embaixo do xale.

— Por favor, nos mostre o homenzinho e a mulherzinha — clamaram — e nos deixe ouvir o peribaque. Fomos muito malcomportadas ontem à noite. — Mas a garota manteve o peribaque cuidadosamente guardado. — Fomos muito malcomportadas — bradaram novamente as crianças.

— Pois é — disse ela; o tom era precisamente o mesmo do dia anterior.

— Mas nós fomos — repetiram —; fomos mesmo.

— Assim dizem vocês — respondeu ela. — Não foram nem de perto malcomportadas o bastante.

— Ué, ficamos de castigo!

— Exatamente — disse a garota, cobrindo o peribaque com a outra ponta do xale. — Tivessem sido realmente malcomportadas, não teriam obedecido; mas não têm como evitar. Como eu disse, é preciso um bocado de talento para ser mau bem.

— Mas quebramos as canecas, jogamos fora o pão com manteiga, fizemos tudo que podíamos para aborrecer.

— Ninharias — respondeu com desdém a garota da vila. — Apagaram o fogo com água gelada, quebraram o relógio, jogaram no chão as coisas penduradas nas paredes?

— Não! — exclamaram, horrorizadas, as crianças. — Não fizemos nada disso.

— Achei que não — respondeu a garota. — Muitas pessoas confundem um pouquinho de barulho e traquinice com verdadeira diabrura; mas, como eu disse, requer habilidade fazer a coisa direito. Bem, tenham um bom dia — e desapareceu antes que dissessem outra palavra.

— Faremos muito pior — clamaram as crianças, desesperadas. — Faremos tudo que ela disse.

E voltaram para casa e fizeram todas essas coisas. Jogaram água no fogo; derrubaram a assadeira e a forma de bolo, a espátula e a tampa da caçarola que nunca viram para batucar no chão; quebraram o relógio e pisotearam a manteiga; puseram tudo de pernas para o ar; em seguida, sentaram e imaginaram se haviam sido suficientemente malcomportadas. E quando a mãe viu tudo que tinham feito, não ralhou, como no dia anterior, nem as colocou de castigo – desmoronou, simplesmente, e chorou; depois, triste, olhou para as crianças e disse:

— A não ser que se comportem bem amanhã, minhas pobres Olhos Azuis e Glu-glu, eu vou mesmo embora e não vou voltar, e a nova mãe de que lhes falei virá ter com vocês.

Não acreditaram nela; mas doeu-lhes o peito ver como parecia triste, e pensaram consigo mesmas que, quando tivessem finalmente visto dançar o homenzinho e a mulherzinha, seriam boazinhas com a mãe para todo o sempre; mas não podiam ser boazinhas até ouvir o som do peribaque, assistir à dança do homenzinho e da mulherzinha e ouvir o segredo – aí ficariam satisfeitas.

No dia seguinte, antes mesmo de os pássaros despertarem, antes mesmo de o sol subir o bastante para olhar pela janela de seu quarto ou de as flores esfregarem os olhos e se dizerem prontas para o dia, as crianças levantaram, deixaram a cabana de fininho e correram até os campos. Não acreditavam que a garota da vila estivesse de pé tão cedo, mas seu coração doía tanto ante a visão do rosto triste da mãe que não conseguiam dormir e queriam saber logo se haviam sido malcomportadas o bastante e se poderiam finalmente ouvir o peribaque e ver o pequenino casal; depois voltariam para casa e seriam boazinhas para sempre.

Para sua surpresa, encontraram a garota da vila encostada no monte de pedras, quase como se ali fosse seu hábitat natural. Aceleraram a corrida ao vê-la e perceberam que a caixa que continha o pequenino casal estava aberta, mas ela a fechou rapidamente quando as viu, e elas ouviram o clique da mola que a mantinha fechada.

— Fomos muito malcomportadas — gritaram. — Fizemos todas as coisas que nos disse; pode nos mostrar o homenzinho e a mulherzinha agora?

A garota olhou-as de modo curioso, depois tirou do bolso o lenço de seda amarelo que às vezes usava na cabeça e começou a alisá-lo com as mãos.

— Vocês parecem mesmo muito agitadas — falou em seu tom de voz usual. — Melhor se acalmarem; a calma recolhe e encobre tudo como um grande manto, ou como meu xale aqui, por exemplo — e olhou para baixo, para a peça esfarrapada que ocultava o peribaque.

— Fizemos todas as coisas que nos disse — gritaram novamente as crianças — e queremos muito ouvir o segredo. — Mas a garota continuava simplesmente alisando o lenço.

— Sou muito exigente quanto à minha vestimenta — disse ela. Mal podiam ouvi-la em sua agitação.

— Diga-nos se podemos ver o homenzinho e a mulherzinha — suplicaram novamente. — Fomos muito, muito malcomportadas e mamãe diz que irá embora hoje e mandará para casa uma nova mãe se não formos boazinhas.

— Pois é — disse a garota, começando a se interessar e divertir. — As pessoas dizem as coisas mais curiosas e engraçadas. Há uma interminável variedade na linguagem. — Mas as crianças não entenderam, apenas suplicaram mais uma vez para ver o pequenino casal.

— Bem, deixem-me ver — disse a garota por fim, como se a reconsiderar. — Quando sua mãe disse que iria embora?

— Mas o que faremos se ela for? — gritaram em desespero. — Não queremos que ela vá; nós a amamos muito. Oh! O que faremos se ela for embora?

— As pessoas vão e vêm; vão primeiro, depois vêm. Talvez ela vá antes de vir; ela não pode vir antes de partir. É melhor voltarem e serem boazinhas — acrescentou repentinamente a garota —; vocês não são suficientemente espertas para serem outra coisa; e o segredo da mulher pequenina é muito importante; ela não vai contá-lo em troca de malvadez de mentirinha.

— Mas fizemos todas as coisas que nos disse — gritaram, desesperadas, as crianças.

— Não arremessaram o espelho pela janela, tampouco seguraram o bebê de ponta-cabeça.

— Não, não fizemos essas coisas — sobressaltaram-se as crianças.

— Achei que não — disse a garota, triunfante. — Bem, tenham um bom dia. Não estarei mais aqui amanhã. Bom dia.

— Oh, não vá embora — gritaram. — Estamos tão infelizes; deixe-nos ver, uma vez só.

— Bem, passarei pela sua cabana às onze da manhã — disse a garota. — Pode ser que eu toque o peribaque no caminho.

— E vai nos mostrar o homenzinho e a mulherzinha? — perguntaram.

— Impossível, a não ser que façam realmente por merecer; malvadez de mentirinha é apenas bondade azedada. Agora, se quebrarem o espelho e fizerem o que se pede…

— Oh, nós faremos — gritaram. — Seremos muito malcomportadas até ouvi-la chegando.

— Perda de tempo, receio — disse educadamente a garota —; mas certamente não quero ser eu a desestimulá-las. Vejam, o homenzinho e a mulherzinha, acostumados que estão à alta sociedade, são muito exigentes. Bom dia — disse, como sempre dizia, e rapidamente se virou, mas olhou para trás e bradou: — Onze horas em ponto; sou muito exigente quanto a meus compromissos.

Então as crianças foram para casa e se comportaram tão mal, oh, tão, tão mal que o coração da doce mãe doeu e seus olhos se encheram de lágrimas; ela subiu, por fim, e colocou lentamente seu melhor vestido e seu novo chapéu de sol, e vestiu o bebê com suas roupas de domingo, e em seguida desceu e parou em frente a Olhos Azuis e Glu-glu. Bem nessa hora, Glu-glu atirou pela janela o espelho, que caiu no quintal fazendo um barulhão.

— Adeus, minhas meninas — disse tristemente a mãe, dando um beijo em cada. — Adeus, minha Olhos Azuis; adeus, minha Glu-glu, a nova mãe não tardará a chegar. Oh, minhas pobres crianças! — Depois, chorando amargamente, pegou o bebê no colo e se virou para deixar a casa.

— Mas, mamãe — gritaram as crianças — nós estamos… — e de repente o relógio quebrado bateu dez e meia, e souberam que dentro de meia-hora a garota da vila passaria tocando o peribaque. — Mas mamãe, seremos boazinhas às onze e meia, volte às onze e meia — gritaram — e seremos boazinhas, seremos mesmo; precisamos ser malcomportadas até onze horas. — Mas a mãe se limitou a pegar a trouxinha em que ajuntara seu avental de algodão e um par de sapatos velhos e a se dirigir lentamente para a porta. Parecia que as crianças estavam enfeitiçadas e não podiam segui-la. Abriram a janela e chamaram:

— Mamãe! Mamãe! Oh, mamãe querida, volte! Seremos boazinhas, seremos boazinhas agora, seremos boazinhas para todo o sempre se você voltar. — Mas a mãe simplesmente olhou em volta e balançou negativamente a cabeça, e viram que as lágrimas rolavam por suas faces.

— Volte, mamãe querida! — gritou Olhos Azuis; mas a mãe, que atravessava os campos, não se deteve.

— Volte, volte — gritou Glu-glu; mas a mãe prosseguiu. Na curva do campo, ela parou e se voltou, e acenou para as crianças na janela com o lenço encharcado de lágrimas; fez o bebê jogar beijos com a mão; e, num instante, mãe e bebê sumiram de vista.

Então as crianças sentiram a tristeza machucar-lhe o coração e choraram tão amargamente quanto havia feito a mãe, mas ainda não conseguiam acreditar que ela tivesse ido embora. Ela vai voltar, pensaram; ela não as abandonaria de todo; mas oh, se abandonasse… se abandonasse… se abandonasse. E aí o relógio quebrado bateu onze horas, e de repente ouviram um som – um som ligeiro, vibrante, clangoroso, com um barulho estranho e discordante de tempos em tempos; e se entreolharam, coração parado no peito, pois sabiam que era o peribaque. Correram para a janela, de onde viram a garota vindo em sua direção pelos campos, dançando e tocando. Atrás dela, caminhando devagar, e ainda assim mantendo sempre a mesma distância, vinha o homem com os cachorros que viram dormindo próximo ao Blue Lion naquele primeiro dia em que encontraram a garota com o peribaque. Ele tocava uma flauta de som estranho e estridente; ouviam-no claramente por sobre o clangor do peribaque. Depois do homem vinham os cães, valsando lentamente sobre as patas traseiras.

— Fizemos tudo que nos disse — bradaram as crianças, recuperadas de sua perplexidade. — Venha ver; agora nos mostre o homenzinho e a mulherzinha.

A garota não parou de tocar nem de dançar, mas respondeu numa voz meio falada, meio cantada que parecia em compasso com a estranha música do peribaque.

— Tudo mal feito. Jogaram a água do lado errado do fogo, os utensílios de metal não estavam exatamente no meio da sala, o relógio não estava suficientemente quebrado, não puseram o bebê de cabeça para baixo.

Então as crianças, ainda enfeitiçadas à janela, gritaram, suplicando e torcendo as mãos: — Oh, mas fizemos tudo que nos disse e mamãe foi embora. Mostre-nos o homenzinho e a mulherzinha e nos deixe ouvir o segredo.

A garota estava agora bem em frente à cabana, mas não parou de tocar. O barulho das cordas parecia penetrar o coração das crianças. Não parou de dançar; já estava agora deixando a cabana para trás. Não parou de cantar e tudo quanto dizia parecia fazer parte de uma terrível canção. E o homem continuava a segui-la, sempre à mesma distância, tocando sua flauta estridente; e atrás dele, os cães continuavam girando e girando em sua valsa – caudas imóveis, patas esticadas, coleiras límpidas, brancas e rígidas. Assim prosseguiam, todos juntos.

— Oh, pare! — gritaram as crianças. — Mostre-nos o homenzinho e a mulherzinha.

Mas a garota cantou em alto e bom som, enquanto a corda desafinada vibrava acima de sua voz:

— O homenzinho e a mulherzinha estão muito longe. Vejam, a caixa está vazia.

Então as crianças perceberam que a tampa da caixa estava destravada e caída para trás e que nela não havia nenhum homenzinho, nenhuma mulherzinha.

— Vou para a minha terra — cantou a garota —, para a terra onde nasci. — E prosseguiu rumo à longa e reta estrada que conduzia à cidade distante muitos e muitos quilômetros.

— Mas nossa mãe foi embora — gritaram as crianças —; nossa querida mãe, será que ela volta?

— Não — cantou a garota —; ela jamais voltará, jamais voltará. Eu a vi na ponte; ela tomou um barco no rio; está navegando para o mar; indo ao encontro de seu pai, e eles navegarão para terras muito distantes.

E as crianças choraram ao ouvir isso, mas não conseguiram falar mais, pois seu coração parecia se partir no peito.

Então a garota, sua voz ficando cada vez mais fraca à distância, bradou outra vez para elas. Não fosse o pavor que lhes aguçava os sentidos, mal teriam conseguido ouvi-la, tão longe ela estava e tão dissonante era a música.

— Sua nova mãe está chegando. Ela já está a caminho; mas anda devagar, pois seu rabo é muito longo e seus óculos ficaram para trás; mas ela está chegando, está chegando… chegando…chegando.

A última palavra se extinguiu; foi a última coisa que ouviram da garota da vila. Em frente, sempre, sempre dançando; e sempre seguida pelo homem, que ainda tocava, pelo que podiam ver, embora já não ouvissem o som de sua flauta; e atrás dele, sempre, os cães a girar e girar e girar. Todos em frente, e cada vez mais distantes, até não mais serem coisas separadas, até se tornarem uma confusa massa de cor indistinta, até se tornarem um objeto escuro e nebuloso sem nada que os distinguisse, até desaparecerem por completo – por completo e para sempre.

Então as crianças se viraram e olharam uma para a outra e para a pequena cabana que era seu lar, que há apenas uma semana fora tão clara e alegre, tão aconchegante e imaculada. O fogo estava apagado e ainda havia água em meio às cinzas; a assadeira e a forma de bolo, a espátula e a tampa da caçarola, que a mãe querida costumava passar tanto tempo areando, haviam sido arrancadas de seu lugar nas paredes e estavam largadas no chão. E havia o relógio todo quebrado e estragado, a figurinha em sua face não mais visível; e embora batesse às vezes uma hora qualquer, seu tom era o de um relógio cujas horas estão contadas. E havia a cadeirinha do bebê, sem nenhum bebê para se sentar; havia o guarda-louça na parede, sem nunca um pão doce na prateleira; e havia as canecas quebradas e as migalhas de pão espalhadas, e as tábuas escorregadias que a mãe, de joelhos, esfregara até ficarem brancas como a neve. No meio de tudo isso, as crianças olhavam o estrago que haviam feito, o coração dolorido, os olhos obscurecidos pelas lágrimas e as pobres mãozinhas entrelaçadas em sua angústia.

— Oh, o que faremos? — chorava Olhos Azuis. — Queria que nunca tivéssemos visto a garota da vila e aquele peribaque horrível.

— Certeza que mamãe vai voltar — soluçou Glu-glu. — Se não, estou certa de que vamos morrer.

— Não sei o que fazer se a nova mãe vier — choramingou Olhos Azuis. — Eu nunca, nunca vou gostar de outra mãe. Não sei o que faremos se essa mãe horrível vier.

— Não a deixaremos entrar — disse Glu-glu.

— Mas talvez ela entre mesmo assim — soluçou Olhos Azuis.

Então Glu-glu parou de chorar um minuto para pensar no que deviam fazer.

— Vamos trancar a porta — falou — e fechar a janela; e não vamos atender quando ela bater.

Daí trancaram a porta, fecharam a janela e passaram a trava. Em seguida, a despeito do que haviam dito, sentiram-se endiabradas de novo e almejaram pelo pequenino casal que nunca tinham visto, muito mais do que pela mãe que as amara a vida toda. Mas não acreditavam realmente, até aí, que sua mãe não voltaria ou que uma nova mãe tomaria seu lugar.

Na hora do almoço, estavam com muita fome, mas só encontraram um pedaço de pão dormido e tiveram de se contentar com ele.

— Oh, queria ter ouvido o segredo da mulherzinha — resmungou Glu-glu —; aí eu nem me importaria.

Passaram toda a tarde de olhos abertos e orelha em pé por medo da nova mãe; mas não viram nem ouviram sinal dela e, pouco a pouco, temeram menos e menos sua possível chegada. Então pensaram que, talvez, quando escurecesse, sua querida mãe viesse para casa; e talvez, se pedissem, ela as perdoasse. E Olhos Azuis pensou que, se viesse, sua mãe estaria com muito frio, de modo que se esgueiraram pela porta dos fundos, juntaram um pouco de lenha e, finalmente, porque ainda havia água na lareira e porque era difícil mesmo, conseguiram acender o fogo. Quando o viram arder e iluminar e as pequenas chamas saltarem e brincarem entre a lenha e o carvão, começaram a se sentir felizes de novo e a ter certeza de que sua mãe retornaria; e a visão do fogo agradável lembrou-as de todas as vezes em que ela esperara que voltassem da agência dos correios e de como as recebera e confortara, com chá morno e pão doce, e conversara com elas. Oh, como lamentavam ter sido malcomportadas, e tudo por aquela garota horrível da vila! Não davam a mínima agora para o homenzinho e a mulherzinha, tampouco queriam ouvir o segredo.

Buscaram um balde d’água e lavaram o chão; encontraram um trapo e esfregaram os metais até brilharem novamente, e, apoiando o escabelo sobre uma cadeira, subiram com muito cuidado e penduraram as coisas em seus devidos lugares; depois recolheram as canecas quebradas e deixaram a sala o mais arrumada possível, até parecer mais e mais como se a própria mãe tivesse ocupado ali suas mãos. Sentiram-se mais e mais confiantes de que ela retornaria, ela e o querido bebezinho, e pensaram como lhe serviriam o chá, do mesmo modo como ela muitas vezes fizera para as filhas malcomportadas. Desceram a bandeja do chá e pegaram as xícaras, puseram a chaleira no fogo para ferver e fizeram tudo parecer tão acolhedor quanto possível. Não havia pão doce para pôr na mesa, mas talvez a mãe trouxesse alguma coisa da vila, pensaram. Finalmente ficou tudo pronto, e Olhos Azuis e Glu-glu lavaram o rosto e as mãos, depois sentaram e esperaram, pois, obviamente, não acreditavam no que dissera a garota da vila a respeito de sua mãe navegar para longe.

De repente, enquanto se sentavam perto do fogo, ouviram um barulho como que de alguma coisa pesada se arrastando no chão do lado de fora, depois uma batida forte e terrível na porta. As crianças sentiram o coração parar. Sabiam que não podia ser sua mãe, pois ela teria experimentado a maçaneta e tentado entrar em vez de bater.

— Oh, Glu-glu! — sussurrou Olhos Azuis. — O que faremos se for a nova mãe?

— Não a deixaremos entrar — sussurrou Glu-glu, que estava com medo de falar alto, e outra vez soou a longa, forte e terrível batida na porta.

— O que vamos fazer? Oh, o que vamos fazer? — choraram as crianças, em pânico. — Oh, vá embora! — bradaram. — Vá embora; não vamos abrir; não mais seremos malcomportadas; vá embora, vá embora!

Mas de novo soou uma forte e terrível batida.

— Vai quebrar a porta se ela bater forte assim — gritou Olhos Azuis.

— Vai lá e faz peso na porta — sussurrou Glu-glu — que eu vou espiar pela janela e tentar ver se é mesmo a nova mãe.

Então, com medo e tremendo, Olhos Azuis encostou-se na porta, enquanto Glu-glu foi até a janela e, apertando o rosto contra uma das folhas, espiou lá fora. Tudo que viu foi um chapéu-boneca de cetim preto com babado na borda e um longo braço ossudo que carregava uma bolsa preta de couro. De sob o chapéu emanava uma estranha claridade, e o coração de Glu-glu desmoronou e seu rosto ficou pálido, pois sabia que era o faiscar de dois olhos de vidro. Arrastou-se até onde estava Olhos Azuis.

— É – é – é ela! — sussurrou, a voz vacilando de medo. — É a nova mãe! Ela veio, e trouxe suas coisas numa mala de couro preto pendurada no braço!

— Oh, o que vamos fazer? — pranteou Olhos Azuis; e ouviu-se novamente aquela terrível batida.

— Venha e faça peso na porta também, Glu-glu — exclamou Olhos Azuis —; acho que vai ceder.

E juntas se encostaram na porta para escorá-la. Houve uma longa pausa. Pensaram que, talvez, a nova mãe tivesse se convencido de que não havia ninguém em casa para abrir a porta e ido embora, mas logo ouviram, através da fina porta de madeira, a nova mãe se afastar um pouco e falar para si mesma:

— Vou arrombar a porta com meu rabo.

Por um momento terrível, tudo ficou imóvel, mas as crianças quase podiam ouvi-la erguer o rabo; em seguida, com um golpe assustador, a portinha pintada rachou e se estilhaçou.

Com um berro, as crianças dispararam dali e fugiram pela cabana e para a floresta pela porta dos fundos. Passaram a noite toda no escuro e no frio, e todo o dia seguinte e o próximo, e todos os outros dias frios e tristes e as noites longas e escuras que se seguiram.

Ainda estão lá, minhas crianças. Há muitas semanas e meses continuam lá, tendo apenas o junco como travesseiro e as folhas mortas como cobertor, se alimentando de morangos silvestres no verão ou, quando verdes, de nozes; de amoras no outono, quando perdem o azedo; e, no inverno, das frutinhas vermelhas que dão em meio à neve. Perambulam entre os altos e escuros abetos ou embaixo das grandes árvores mais afastadas. Às vezes, param para descansar nas águas junto ao arvoredo, onde são mais bastas as samambaias, e sonham, sonham com um anelar maior do que podem expressar as palavras em ver sua querida mãe de novo, só mais uma vez, para dizer que serão boazinhas para todo o sempre – só mais uma vez.

E a nova mãe permanece na pequena cabana, mas as janelas e as portas estão fechadas e ninguém sabe como é lá dentro. Vez ou outra, depois que escurece e quando a noite está quieta, Olhos Azuis e Glu-glu se achegam de mãos dadas, pé ante pé, à casa em que um dia foram tão felizes e, com o coração palpitando, observam e ouvem; às vezes, um clarão ofuscante atravessa a janela e sabem que é a luz dos olhos de vidro da nova mãe; ou escutam um estranho som abafado e sabem que é o barulho de seu rabo de madeira arrastando nas tábuas do chão.


Imagens: Ilustrações de Dorothy Tennant (1855-1926) para "The New Mother" (Anyhow Stories, Moral and Otherwise, 1882).

Tradução: Rodrigo R. Carmo


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